Nascido no berço da contra-cultura – a rua –, o grafite se elevou ao status de arte com o célebre nova-iorquino Jean-Michel Basquiat na década de 1980.
No entanto, sua popularização e aceitação no Brasil não data desde então: bem mais recente que isso, sua receptividade positiva no país não tem muito mais de uma década.
Como é possível esperar, então, um cenário de maior aceitação social para a pichação? Indivíduos têm o direito de transformar a cidade ao seu gosto e assinatura?
Perante a lei brasileira, que reconhece o grafite como arte desde que feito com autorização da prefeitura ou do proprietário do espaço privado em questão, a pichação é considerada vandalismo e crime ambiental.
É importante ressaltar que o debate generalista em torno do picho obedece aos padrões estéticos impostos pelo senso comum. É bastante compreensível, no entanto, que o cidadão de classe média e alta não se identifique com o picho, pois lhe é indecifrável.
Contudo, quão curioso é passar pelo mesmo lugar todos os dias – seja na ida ao trabalho, à faculdade, à escola dos filhos – e não ter ideia do que está escrito na mureta daquela esquina que está sempre engarrafada?
É surpreendente o fato de existir uma barreira de linguagem entre pessoas de uma mesma cidade, estado, país. As raízes dessa barreira, porém, são mais profundas do que uma simples definição de “vandalismo”: a questão é intrinsecamente social.
“Tem que ser muito arteiro para subir vinte andares e fazer sua assinatura lá de cima”, me disse, provocativo, o grafiteiro – e ocasionalmente pichador – Pedro Loyola. O artista defende manifestações culturais urbanas: em suas palavras, “apesar de ser agressivo e ilegal, picho é arte, sim. Sempre será e sempre foi. Cada forma de arte se manifesta de maneiras diferentes, mas todas têm um âmago, um intuito, um propósito”. E tem mesmo: o picho, no caso, transgride. E não é sem querer.
O manifesto silencioso da lata de spray, sorrateira e veloz sob a penumbra noturna, é, na verdade, um grito. Carrega toda as injustiças e intensidade das metrópoles: sua estética é propositalmente provocativa, não foi feita para agradar olhos desavisados de toda a sua bagagem.
Para a própria autora que vos escreve, por exemplo, por muito tempo tal manifesto cultural foi indiferente – e sequer pessoalmente considerado como arte (porém, nada como um movimento contracultural para despertar posteriormente a curiosidade de uma jornalista inclinada para as artes).
É surpreendente o fato de existir uma barreira de linguagem entre pessoas de uma mesma cidade, estado, país. As raízes dessa barreira, porém, são mais profundas do que uma simples definição de “vandalismo”: a questão é intrinsecamente social.
O território urbano se tornou o campo de batalha de uma contínua guerra espacial, como expõe o renomado filósofo polonês, Zygmund Bauman, na obra Globalização: as consequências humanas.
Esse confronto “às vezes irrompe no espetáculo público de motins internos (…) travados diariamente logo abaixo da superfície da versão oficial pública da ordem urbana rotineira”.
Dessa forma, “os habitantes desprezados e despojados de poder de áreas pressionadas e implacavelmente usurpadas respondem com ações agressivas próprias”. Quão violenta, no entanto, pode ser uma lata de spray na sociedade?
O rumo para a compreensão do que é a manifestação social e cultural do picho ainda parece distante. A própria grafia da palavra pichação é uma boa metáfora para tal: você nunca verá um pichador escrever picho e suas derivações com “ch”, e sim com “x”. Pixo. Nem linguisticamente esses indivíduos estão inseridos em sociedade.
O cenário nacional parece ainda voltar alguns passos, quando a maior metrópole do país, conhecida internacionalmente como “a capital mundial do grafite” ou até “o maior museu a céu aberto do mundo”, caminha em direção a muros cinzas, determinados pelo poder público. Ficamos, por enquanto, somente com o reconhecimento internacional. O Brasil ainda não parece pronto para admitir que nossa selva artística é, sim, caótica – porém linda.
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