O curador Gaudêncio Fidélis poderia estar de chegada em Curitiba apenas para realizar o vernissage da exposição Corpos de Fábrica: Obras de Ana Norogrando, da qual assina curadoria no Museu Oscar Niemeyer.
No entanto, depois do encerramento abrupto de Queermuseu pelo Santander Cultural em setembro, a situação da arte e da cultura no país se emaranhou em diversas vertentes no debate público, se tornando cada vez mais fragilizada.
É por isso que, na segunda-feira (20), o curador se juntará no prédio histórico da UFPR a advogados, jornalistas e artistas para um debate: quais os limites do direito sobre a arte? Afinal, os profissionais do judiciário têm autoridade ou bagagem artística o suficiente para compreender determinadas questões sem beirar o incoerente?
Porém, antes que essa discussão sobre o atual e caótico cenário da arte contemporânea no país seja levada a cabo, Gaudêncio poderá ser levado à força para Brasília para depor em uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) de maus-tratos e pedofilia.
Afinal, ontem à noite, Alexandre Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, liberou o pedido de condução coercitiva do curador de Queermuseu, a pedido do senador e pastor evangélico Magno Malta (PR-ES).
Esta não é a primeira ou a última incoerência da CPI presidida pelo religioso, que promete combater casos de automutilação, suicídio, abuso, exploração, violência e trabalho de crianças e adolescentes através do encarceramento de curadores de arte. Afinal, nada melhor para combater a fome, a pobreza e o déficit na educação básica do país que o fechamento abrupto de uma exposição.
Para mentes desprovidas de fundamentalismo religioso, fica claro que esta não é ou deveria ser competência ou objeto original de uma CPI que promete julgar casos seríssimos de abuso infantil.
Fica bem claro o circo midiático orquestrado por Magno, submetendo Gaudêncio a bode expiatório para agradar aos olhos de fiéis e cair em maiores graças eleitoreiras.
“[A comissão] foi completamente distorcida pelo Senador Magno Malta, com objetivos obscuros e eleitoreiros. Dentre estes objetivos obscuros está o de criminalizar a produção artística e os artistas para prosseguir na instalação de um regime fundamentalista nos costumes”, desabafou Gaudêncio para A Escotilha.
A aprovação da condução coercitiva veio como surpresa para Gaudêncio, já que, no dia 4 de outubro, havia concordado em comparecer à próxima reunião agendada pela Comissão, embora discordasse que teria qualquer coisa a ver com uma CPI que trata de abuso infantil.
Iria para se defender. “O Senador se utiliza de dinheiro do contribuinte para mover perseguições a profissionais honestos da classe artística e outros relacionados à exposição, o que não é condizente com uma instituição como o Senado Federal, que prima pelos direitos dos cidadão e pela democracia”, afirmou.
Fica muito claro o desperdício de dinheiro público, com toda a ação que terá que ser orquestrada pela Polícia Federal, para conduzir à força até Brasília um homem que em nenhum momento havia discordado em comparecer à CPI.
Fica bem claro também o circo midiático orquestrado por Magno, submetendo Gaudêncio a bode expiatório para agradar aos olhos de fiéis e cair em maiores graças eleitoreiras.
Nossa constituição declara que as leis brasileiras devem se basear na laicidade, mas a predominância de setores religiosos no Legislativo e Judiciário tem mostrado justamente o contrário.
Diante de tamanhos absurdos, o curador, no entanto, reitera: não devemos celebrar a tragédia. “O fechamento da Queermuseu foi uma tragédia para a arte brasileira e o patrimônio cultural e artístico do país, mas precisamos também olhar as coisas em perspectiva. A Queermuseu está nos oferecendo uma possibilidade de debate nunca vista na sociedade brasileira, que diz respeito e interessa a todos nós”, diz. Esse momento, de fato, configura profunda união da classe artística e, segundo Gaudêncio, “a criação de um senso de comunidade que não tínhamos e está se consolidando através do debate“. Em momentos obscuros, juntos temos mais força.
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