Uma das atrações mais interessantes atualmente na TV a cabo é o reality show Born to Fashion, uma competição de modelos com formato semelhante a muitos outros programas sobre moda (dentre eles, America’s Next Top Model, Project Runaway e mesmo RuPaul’s Drag Race). A atração do canal E!, que é brasileira, diferencia-se especialmente num detalhe importante: todas as modelos competidoras são mulheres trans.
O programa, inclusive, gerou bastante repercussão antes mesmo de sua estreia. Financiado pela Ancine, Born to Fashion entrou no raio das polêmicas de Jair Bolsonaro como um exemplo de produto que a agência não deveria patrocinar, por ir contra à sua ideia de “moral e bom costumes” (o programa venceu edital e pode captar 3 milhões em patrocínio, o que viabilizou sua execução).
Pois bem, o programa por fim estreou e é, como prometia, realmente delicioso. Ele consegue contemplar duas coisas: a futilidade de uma competição sobre moda (em que se olha e julga as melhores poses, os carões, o estilo, a fotogenia) com uma discussão densa sobre política, uma vez que estamos diante aqui de pessoas historicamente estigmatizadas, postas à periferia da sociedade – e que, por isso mesmo, são calejadas e preparadas para defender a todo instante sua posição no mundo. Nenhuma das modelos parece frívola: todas têm muitas coisas relevantes a dizer e contar.
Por isso mesmo, mal estreou o programa, um trecho de um episódio viralizou em redes sociais e trouxe um destaque instantâneo ao Born to fashion. Falo da cena que exibe a participação do estilista Alexandre Herchcovitch. Ao dar um workshop às modelos, Herchcovitch disse que sempre se sentiu “um pouco travesti”. Frente a isso, o que decorreu em seguida foi uma verdadeira aula.
Uma das modelos, Natt Mati, puxou o coro: “o que é ser um pouco travesti?”. Visivelmente desconcertado, Herchovitch se defendeu: “é ser livre para fazer o que eu quiser, usar o que eu quiser, falar como eu quiser, não é de maneira pejorativa, mas o pouco que eu consigo me transformar naquilo que eu quero eu me sinto um pouco transformador”.
Em suma, estamos diante de mais um relance à sanha do cancelamento que atinge todos os sujeitos que estão hoje no mundo – independente de estarem ou não nas redes sociais.
A resposta não colou. A modelo Luna Ventura emendou: “isso não tem nada a ver com ser travesti. Você é um homem branco cis (ou seja: um homem que se identifica com seu próprio gênero designado em seu nascimento – no caso, o masculino). Não sei da sua sexualidade, mas a gente passa por muita coisa por sermos mulheres trans, travestis. Você falar isso soa muito ofensivo”.
Didaticamente, explicou: “é a mesma coisa que eu falar: eu tenho um amigo gay, que eu adoro, então eu sou um pouco gay. Se eu falasse isso, seria retaliada”. Por fim, a modelo Miranda Luz encerrou: “é para que as pessoas em casa não confundam essa palavra como uma identificação passageira, hoje eu estou um pouco travesti, amanhã não mais” (veja todo o episódio aqui).
O episódio gerou muita repercussão online, e talvez tenha sido benéfica para o programa – fez com que muitas pessoas passassem a conhecê-lo. No entanto, apontou tangencialmente a uma discussão cada vez mais preocupante: o furor com que as pessoas resolveram atacar o estilista nas redes, chamando-o de transfóbico, gay branco, homem cis (neste link, é possível ver alguns tweets que o atacaram). Em outras palavras, houve aqui indícios de que Alexandre Hercovitch teria caído na chamada “cultura de cancelamento”, aquela sanha punitiva em todos nós parecemos à espreita aguardando qualquer deslize para “cancelar” qualquer um que fale alguma besteira. Uma vez que hoje tudo é gravado, há sempre material de sobra para o cancelamento.
O mais curioso deste episódio é que as próprias modelos – as que o confrontaram e o “educaram” – saíram em defesa do estilista em suas redes. Ou seja, a ofensa foi mais repercutida pelos usuários das redes sociais do que pelas pessoas que, teoricamente, ele ofendeu. Todos os envolvidos (estilista e modelos) fizeram posts apontando que a cena exibia uma situação de um diálogo, e não de um “cancelamento”. Lembraram, inclusive, que Herchcovitch tem uma forte participação na luta das transexuais brasileiras: foi um dos primeiros estilistas a convidar mulheres trans para serem modelos em seus desfiles.
Em suma, estamos diante de mais um relance à sanha do cancelamento que atinge todos os sujeitos que estão hoje no mundo – independente de estarem ou não nas redes sociais. Os efeitos dessa “cultura”, como tem sido discutido amplamente, são devastadores: pessoas perdem seu direito à fala e veem ruir, por um deslize, uma repercussão construída há anos (e, vale lembrar, todos estamos propensos a deslizes e erros).
No entanto, eu queria destacar o quanto esta leitura sobre o “polêmico” é destacada pela edição do programa, que faz que o sentido “lacração” seja a chave preferencial para ver o episódio de Born to fashion. A edição, com alta quantidade de efeitos sonoros, força a sensação de suspense e drama. O mesmo acontece em episódios anteriores: sempre que alguma modelo está para fazer alguma declaração controversa (por exemplo, quando uma conta que foi prostituta ou quando outra diz que, na verdade, não é transexual), há novamente a trilha sonora dramática e um corte para o intervalo.
Esta edição pesada (no sentido de forte, sem deixar espaço para que os espectadores façam leituras diferentes do que veem) tira um pouco o brilho do programa, que é, de fato, importantíssimo: traz dignidade para que as pessoas trans se ambientem em um universo, o da moda, que sempre foi excludente). Mais importante de tudo, dá espaço para que elas falem de si mesmas, sem intermediários. Por isso, considero crucial o diálogo das modelos com Herchcovitch: ele tem uma mensagem muito mais clara e produtiva do que qualquer “lacração”.