Um cartunista na casa dos 60 anos, separado pela segunda vez, faz uma apresentação a seus minguados fãs. Os presentes são fascinados pelo caráter biográfico de suas graphic novels. Assim como vários grandes cartunistas que conhecemos (como Robert Crumb), este artista registra em sua obra episódios do seu dia a dia: suas neuroses, seus problemas no casamento, as pessoas com quem cruza em seu caminho.
A plateia é formada por uns poucos estudantes de Artes. Uma das fãs é uma jovem muito bonita, que constrói uma obra autoral: ela faz selfies nas mais cotidianas situações de sua vida. O cartunista e a artista se atraem, e passam a noite juntos. Semanas após, ele é convidado para uma exposição. Chegando lá, o susto: ela havia registrado uma selfie pós-sexo, em que ele aparece no fundo da foto, dormindo.
O cartunista se revolta. O debate que se sucede é interessante: ele se sente violado na sua privacidade, ao que ela pergunta se ele a desenhou após a noite juntos (sim, ele fez). A minha privacidade é pública, a artista se defende. Se ele se incomoda em tornar sua vida privada pública pelas mãos de outrem, o que separa a sua obra (gráfica) da dela (fotográfica)? Por que uma seria legítima e a outra condenável?
Este é um episódio da série Easy, disponível no Netflix, que, como tantos outros produtos midiáticos, tem analisado a questão da erosão do aquilo definíamos como público e como privado. Todos nós consideramos que nossa privacidade é um valor inviolável, mas parecemos não notar o quanto a vendemos barato – e o que é pior, inconscientemente – em troca de uma sonhada visibilidade nas mídias.
Cada vez que queremos ‘espiar na fechadura’ da intimidade alheia, estamos legitimando a queda dos muros que separam nossa vida íntima e a vida que compartilhamos com os outros.
A televisão, é claro, tem um papel fundamental neste comércio. Eu acrescentaria, inclusive, que seu papel é cada vez maior, uma vez que a privacidade se torna gradativamente um bem a ser buscado quando assistimos a um programa televisivo. Explico: a partir do momento em que reconhecemos que a televisão – assim como a política – é o território sempre da performance, ficamos “sedentos” por aquelas migalhas de autenticidade, de genuíno sentimento íntimo, quando eles nos são ofertados. Afinal, não queremos nos comover com a estratégia forçada usada por muitas emissoras que tentam nos fazer chorar a todo custo; queremos, de fato, ser convencidos de que aquele sentimento que vemos é real, vem do “coração”, e que não foi organizado de forma intencional para nos sensibilizar.
Por isso, é importante reconhecer que colaboramos para esta falência da vida privada por meio dos nossos programas de televisão. Cada vez que queremos “espiar na fechadura” (o slogan do programa Big Brother, desde 2001, é sintomático deste nosso desejo coletivo) da intimidade alheia, estamos legitimando a queda dos muros que separam nossa vida íntima e a vida que compartilhamos com os outros.
Para ilustrar esta ideia, trago alguns exemplos recentes observados na tevê “mundana”, dos conteúdos aleatórios sobre celebridades e subcelebridades. As mídias estão repletas de personagens que sustentam sua visibilidade por meio do “culto do eu”, ou seja, por apenas ser quem são – o que costuma ser explorado pelas diferentes emissoras e programas com as mais variadas intenções.
Vejamos, por exemplo, um personagem sintomático do mundo das mídias, que é Tammy Miranda, o filho da Gretchen famoso por ter-se assumido transgênero e estar em processo de transição e mudanças em seu corpo. Por si só, Tammy é um indivíduo interessantíssimo: articulado, ele consegue expressar com muita clareza as questões que envolvem os transgêneros. Por isso, pode ser visto como um elemento de representatividade a uma discussão importante, que engloba muitas pessoas, e que até pouco tempo era praticamente invisível nos meios de comunicação.
Por isso mesmo, é surpreendente que Tammy negocie sua privacidade com certos programas que, sem dúvida, afetam negativamente não apenas a sua imagem como a das demais pessoas que representa. Ele foi, por exemplo, ao programa The Noite, capitaneado por Danilo Gentili (veja acima) – atração que hoje se configura como espaço televisivo de afirmação de uma visão direitista e heteronormativa de mundo. No palco do The Noite, Tammy “vende” sua vida privada ao público em troca de piadas machistas feitas por Gentili e por Roger Moreira, como a brincadeira de que a parte mais chata do processo de tomar hormônios masculinos é o de “ter que pagar as contas para a mulher”, e que Gentili também tomaria esses hormônios como uma forma de “ficar mais homem”.
Neste lucrativo processo de negociação da vida privada, Tammy e sua noiva Andressa fazem um tour nos diversos programas televisivos, dos mais sérios aos mais trash. Sendo assim, causa certo estranhamento quando, durante o Superpop da RedeTV!, ele reclama de pessoas que “perdem o filtro” e perguntam coisas referentes à intimidade do casal. O incômodo é legítimo e também paradoxal: se ele se configura como um personagem que sustenta justamente na exposição de sua intimidade, deveria ficar constrangido quando as pessoas tentam adentrar em sua privacidade?
Um outro exemplo aleatório está em uma reportagem de 20 minutos do programa Câmera Record (veja abaixo), que se sustenta por meio da exposição de um suposto “furo”: a entrevista com uma pessoa desconhecida, uma moça chamada Ana Ariel, ex-mulher do ator Caio Blat. São vinte minutos em que nada de relevante é mostrado. Há apenas a “espiadinha” na história malsucedida de tantos casais: eles se conheceram muito jovens, tentaram engravidar, perderam a gravidez e resolvem adotar uma criança (mais por vontade dela, Ana assume).
Tal como um J.D. Salinger tupiniquim, ela resolveu se isolar da vida urbana e nunca mais vir à público, nem exibir seu filho adotivo. Ana negou a guarda compartilhada a Caio Blat, que há 12 anos não vê o filho que registrou, ainda que tenha tentado encontrá-lo. Ou seja, não há escândalo, não há denúncia, não há interesse público de qualquer espécie. São só 20 minutos de vida privada tornada pública, a troco de nada, ou quase nada. Causa curiosidade quanto ao processo no qual esta reportagem culmina: o que leva Ana Ariel resolver falar depois de uma vida levada em reclusão? É dinheiro, visibilidade, sedução feita pela produção da Record, uma chantagem em prol do direito de dar a própria versão dos fatos?
O acesso a estas informações restritas aos bastidores dos processos das emissoras (estes, sim, mantidos sob forte proteção) seria, no mínimo, educativo para o público. Alheios a esta discussão, seguimos hoje todos cúmplices deste interminável “show do eu”, nas palavras da pesquisadora Paula Sibilia. Por consequência, continuamos negociando nossa privacidade a baixos preços. Neste sentido, a ficção – em séries como Easy e Black Mirror – segue expondo de forma muito mais “real” aquilo que vivenciamos e parecemos não enxergar.