Começo este texto resgatando uma memória pessoal. No ano de 2006, estava em São Paulo na ocasião do primeiro jogo da final da Libertadores, disputada por Internacional e São Paulo. Junto a mais três amigas, todas coloradas, resolvemos ir a um bar no bairro Vila Madalena assistir à partida.
Chegando lá, sentamos em uma mesa e nos vimos cercadas de torcedores do São Paulo – basicamente, homens em grupo ou mesas com casais. Mesmo sendo “estrangeiras” naquele local tipicamente paulistano, não nos sentíamos constrangidas. Afinal, éramos apenas quatro mulheres jovens (a única indumentária do Internacional era uma bandeira estendida na mesa) e a Vila Madalena é, no fim das contas, um bairro de classe média/média alta, frequentado por pessoas que, imagina-se no senso comum, tenham nível alto de escolaridade e sejam esclarecidas em suas ações.
No entanto, algo começou a acontecer: o Inter começou a vencer o jogo. E quanto mais gols o time fazia (o jogo terminou em 4 a 3 para o Internacional), mais começávamos a ser alvo de uma agressividade vinda dos homens que estavam em outras mesas. Não eram piadinhas engraçadas a fim de zoar das mulheres e forjar uma tentativa de aproximação, em tom de brincadeira, mas quase um ódio que escapava daqueles indivíduos ao nosso lado.
Recebíamos xingamentos de conotação sexual, que iam desde palavrões a expressões como “virgem” (sugerindo, talvez, falta de sexo como ofensa) e “despedida de solteira” (quase uma variação do “lugar de mulher é na cozinha”: só fazia sentido estarmos ali se fosse a prévia de casamento de uma de nós). A cada gol que o São Paulo conseguia fazer, homens barbados (alguns com idade para serem nossos pais; muitos deles, sentados juntos com suas esposas) nos apontavam o dedo médio e molhavam bolinhas de papel na cerveja para atirar em nossa direção.
Foi uma situação realmente estarrecedora, na minha lembrança (ao fim do jogo, tivemos que ir embora “escoltadas” pelos seguranças do bar). Era quase como se, naquela situação, aqueles sujeitos não nos reconhecessem enquanto mulheres – ou, em outra interpretação possível, era como se sentissem livres o suficiente (pela desculpa da rivalidade entre os times) para deixar vir à tona uma misoginia que talvez nem eles conseguissem reconhecer como sua. Rememoro aqui este episódio para apontar a algo que, desde então, ficou razoavelmente claro para mim: o futebol é, em alguma medida, um território que se entende como um reduto do masculino, da expressão do que eles teriam de mais “animalesco”, brutal. A mulher, neste ambiente, é vista como um visitante indesejado – e se ela estiver lá, é bom que permaneça no seu lugar.
A mulher, no ambiente futebol, é vista como um visitante indesejado – e se ela estiver lá, é bom que permaneça no seu lugar.
Doze anos depois, estamos vivendo uma Copa do Mundo na qual essas questões estão sendo bastante discutidas. Se muito permanece igual, muito também mudou desde 2006. A ascensão das redes digitais tornou possível que muitas vozes se manifestassem em prol da igualdade de gêneros (há uns poucos anos, entendíamos que as mulheres passavam cotidianamente por constrangimentos porque era assim que as coisas funcionavam).
Hoje, por outro lado, há mais discursos que circulam por todos os lugares (como na própria televisão) e essa ideia de que a mulher que entra no ambiente esportivo é uma intrusa que merece ser desrespeitada não passa mais impune – basta ver, por exemplo, a repercussão estrondosa que um vídeo publicado em redes sociais (o famigerado registro dos brasileiros e a russa que não entendia português) pautou praticamente todos os telejornais brasileiros, sendo decodificado como ofensa e não como uma brincadeira. Tudo isso tem trazido, nesta Copa na Rússia, um debate importante: podem as mulheres “invadir” a esfera do jornalismo esportivo, esse sacrossanto universo outrora reservado aos homens?
Se formos analisar as equipes enviadas à Rússia, veremos que elas ainda são compostas majoritariamente por homens. Mas temos vivenciado experiências interessantes na transmissão, como a iniciativa empreendida pelo canal Fox Sports 2, que montou uma equipe totalmente feminina para narrar e comentar os jogos (o que escancarou uma realidade invisível: a profissão de narrador de futebol era tida, até então, como 100% masculina). No entanto, os números de audiência, que colocam a Fox Sports 2 na “lanterna” na quantidade de espectadores, apontam que a iniciativa ainda está sendo vista com certa suspeita pelo público (o canal Fox Sports, com transmissão feita por homens, teve uma audiência 14 vezes maior que o Fox Sports 2).
Mais do que ser vista com pessimismo, a iniciativa merece ser celebrada, uma vez que as mudanças ocorrem por meio de um processo gradativo – seria ilusório imaginar que a audiência televisiva seria prontamente alterada para locutores e comentaristas mulheres sem qualquer estranhamento do público. Há motivos para comemorar: o fato de que nenhuma emissora de televisão se furtou a debater o episódio lamentável dos “pais de família” meio alterados pelo álcool, que deixaram vir à tona piadinhas misóginas na esfera privada (essa tal privacidade ainda existe?) em seus celulares, é algo que jamais ocorreria, digamos, há uns dez anos.
Por fim, um último comentário. Considero fundamental destacar a participação de Fernanda Gentil na cobertura da Globo da Copa do Mundo, por diversas razões. A primeira é a posição galgada nos últimos anos por Fernanda no jornalismo esportivo, por seus próprios méritos. Se o esporte continua, querendo ou não, um território prioritariamente masculino, como argumento neste texto, Fernanda consolidou-se enquanto mediadora central da Globo para falar de esporte, sem qualquer uso do corpo enquanto objeto de desejo (há outras jornalistas e apresentadoras de programas de esporte, como Renata Fan e Larissa Erthal, que seguem explorando esta suposta “ferramenta” enquanto tecem comentários sobre futebol).
A segunda razão é que Fernanda conquistou o respeito neste ambiente também ao se mostrar extremamente franca e articulada acerca de sua vida – ela assumiu publicamente, há alguns anos, viver um relacionamento homoafetivo com outra jornalista. Ao que me parece, do “time feminino” do esporte da Globo (refiro-me às jornalistas que viajaram para a cobertura da Copa), ela é a única que efetivamente consolidou um espaço de igualdade entre os homens da equipe, como se sua opinião tivesse o mesmo peso (ou quase…) que a deles.
Por isso mesmo, considero que houve uma espécie de desserviço na piada que Fernanda Gentil soltou durante uma participação no programa Encontro com Fátima Bernardes. Após fazer comentários acerca da legislação russa, que proíbe a manifestação de afeto entre homossexuais nem nada que possa ser interpretado como “propaganda”, Fernanda soltou o seguinte comentário: “na teoria, tem essa restrição a várias questões, mas, na prática, durante a Copa principalmente, a gente vai vendo no dia a dia. O importante é a gente chegar orientado. Eu, por exemplo, tô bem menininha”.
Ainda que certamente não tenha sido a intenção de Fernanda Gentil (ela se referia ao fato de não deixar explícita sua homossexualidade em público), sua fala acaba assentando um sentido negativo: incute a ideia de que as mulheres até são bem-vindas na Copa, mas desde que sejam bem “menininhas”, ou seja, comportadas e adequadas ao que os homens esperam delas. Um comentário infeliz, mas ainda assim, um pormenor em relação à contribuição que Fernanda trouxe, com sua carreira, à presença feminina dentro do jornalismo esportivo.