Se tem uma carreira que exerce fascínio em todos nós, é a do médico. Para muitos, não por acaso, esta seria a mais nobre profissão – afinal, lida com aquilo que é mais essencial, que é a própria existência humana. Também não à toa, a ficção se alimentou frequentemente do deslumbramento que mantemos com a área médica. Séries com ER, Grey’s Anatomy, Chicago Hope e Nurse Jackie alcançaram imensa longevidade justamente explorando esse filão.
Este encanto pelos médicos e seu ofício, por vezes, é efetivado por meio da televisão. Já comentamos nesta coluna que são poucas as unanimidades entre os colaboradores da Rede Globo. Dentre estas escassas exceções, uma delas sem dúvida é a do médico Drauzio Varella. De reputação ilibada, o médico é conhecido pelas suas múltiplas contribuições à sociedade, seja no trabalho social realizado nos presídios, seja pela qualidade dos seus livros, seja pelo importante papel de democratização de assuntos de saúde que faz nas suas inserções na Globo.
Juntando alhos e bugalhos: recentemente, a Globo investiu no gênero “ficção médica” por meio da série Sob Pressão, que faz uma espécie de pot-pourri com a tensão de uma emergência médica (o mesmo cenário do premiado seriado americano ER) com a precariedade da saúde pública brasileira. Junta, portanto, o ritmo de um seriado médico com o explorado drama das misérias brasileiras – relacionando-se, em certa medida, com uma variedade de filmes que abordam este mesmo ângulo da nossa realidade, como Cidade de Deus.
Mas o que isto tem a ver com o médico Drauzio Varella? A relação está no fato de que ele foi envolvido numa estratégia bastante explorada pela Globo, que é a de divulgar seus produtos de ficção estando seus temas em diversos outros produtos da emissora. Isto costuma acontecer, por exemplo, nas novelas que abordam causas sociais que começam a ser pautas de forma incessante nos outros programas da grade.
O lançamento da série Sob Pressão envolveu um marketing pesado e diluído em vários outros programas. O diretor Andrucha Waddington e o roteirista Jorge Furtado, por exemplo, preencheram um episódio inteiro do Conversa com Bial para falar da novidade – consequentemente, estimular o desejo na audiência de ver Sob Pressão. O Profissão Repórter também fez um programa sobre o mesmo tema.
Já o dr. Drauzio foi envolvido numa outra etapa da estratégia: ele participa de uma série de reportagens no Fantástico, intitulada Tudo pela vida: quando o remédio é tentar o impossível. Durante alguns domingos, as reportagens buscam nos apresentar à realidade pulsante daqueles profissionais que se dedicam à emergência no sistema público brasileiro. Obviamente, há forte continuidade com o tema da série – que, por associação, passa a parecer mais necessária e relevante, já que fala da “vida como ela é”.
Como quase tudo que envolve Drauzio Varella, as matérias têm grande qualidade. São dinâmicas, emocionantes e certamente informativas. Chama-me atenção, no entanto, do quanto elas estão “contaminadas” justamente com a narrativa da ficção médica que é mencionada ao início deste texto. Assistir a elas é quase como ver um episódio de ER no Brasil – e, não por acaso, elas servem justamente para trazer a vontade de ver Sob Pressão, um produto ficcional (mas nem tanto assim, parecem nos dizer as reportagens).
Vejamos alguns aspectos das reportagens Tudo pela vida. A começar, elas estão focadas em personagens centrais (os médicos) que são rodeados por vários personagens tangenciais (os pacientes e seus dramas). Nas duas primeiras reportagens, escolhe-se os personagens a dedo, por serem bastante carismáticos: um médico de emergência em Alagoas e uma obstetra “super atenciosa” em São Bernardo do Campo. Ambos trabalham no sistema público.
As reportagens do Fantástico e do Profissão Repórter nos comprovam que, de fato, realidade e ficção estão – ao menos no que diz respeito à forma – mais próximas do que parecemos acreditar.
A narrativa destaca detalhes que ajudam a construir os médicos como personagens “redondos”. O primeiro doutor, Paulo, “não é um sujeito qualquer”, lembra Drauzio Varella, pois não tem celular nem computador, e mantém imensos cadernos com anotações sobre cada um de seus pacientes. O homem que um dia sonhou em ser obstetra, mas acabou na emergência, realiza seu desejo sendo pai de seis filhos. Já a doutora Roberta, obstetra, é apresentada por meio de sua “vocação”, a de atender sob os protocolos do parto humanizado as mulheres que buscam atendimento pelo SUS. Os dois médicos, certamente, poderiam perfeitamente servir de inspiração para vários doutores da ficção que conhecemos.
As mesmas estratégias são encontradas na reportagem do Profissão Repórter, cujo tema é mais pungente: ela se centraliza nos hospitais do Rio de Janeiro que atendem prioritariamente as vítimas da violência urbana. O ritmo é pulsante, com câmeras na mão e cortes rápidos. Não há como não ficar vidrado por estas imagens que vemos – elas realizam o nosso desejo de estar lá, de conhecer as histórias e os dramas que atingem médicos e pacientes. É melhor ainda que ver ER – afinal, a realidade brasileira é ainda mais precária (e, portanto, heroica) que a norte-americana.
E aí surgem os personagens secundários. São pessoas de todo tipo, acometidas na emergência, de todo tipo. Na maioria, são homens que precisam explicar por que estão ali. Há um sutil trabalho na edição da reportagem do Profissão Repórter que coloca em questionamento tudo que eles dizem, causando uma certa sensação de intriga. Por exemplo: um jovem é trazido ao hospital com uma facada na cabeça e, aparentemente embriagado, dá uma explicação pouco clara à repórter sobre sua situação. Em seguida, ela entrevista a mãe que, visivelmente chocada, diz que o filho costuma puxar briga quando bebe. Mais adiante, um homem fala que estava cantando Raça Negra num karaokê quando levou um tiro. O inóspito do acontecimento narrado, certamente, fortalece o caráter de entretenimento do programa.
Revestidos da qualidade inegável dos produtos Globo, e da narrativa “naturalista” deste gênero da ficção médica, as reportagens do Fantástico e do Profissão Repórter nos comprovam que, de fato, realidade e ficção estão – ao menos no que diz respeito à forma – mais próximas do que parecemos acreditar. E o jornalismo segue desempenhando algumas funções (a de nos entreter, de ficar vidrados na tela) que, talvez acreditássemos um dia, não seriam essencialmente dele.