A Copa do Mundo é um período que suscita sentimentos conflitantes. Ela traz à tona a indignação dos cínicos: os que acreditam que a Copa é pura alienação, uma desculpa para se desconectar da realidade e passar um mês inebriado na sensação de êxtase que é torcer (e sofrer) pela seleção brasileira. Estes acham que os torcedores destinam seus esforços para se importar com astros milionários, elevados à condição de ídolos, mas que merecem muito menos do que recebem (afinal, eles “só jogam bola” – diferente com outras profissões mais nobres que ganham uma miséria). Para os cínicos, este é um momento em que os brasileiros tiram férias dos seus costumeiros problemas para ficarem vidrados em algo que, bem no fundo, é só um entretenimento que não faz diferença concreta nas suas vidas.
Por outro lado, há os entusiastas da Copa, os que são cínicos em relação aos cínicos: os que até entendem o argumento da alienação, mas que acham totalmente legítimo que o torneio sirva como um alívio coletivo a um cotidiano com tantos perrengues. Estes são os que reivindicam o direito dos torcedores de mergulhar no “universo” trazido pela Copa. Os entusiastas querem acompanhar cada jogo, beber de cada detalhe, compartilhar memes bestas (os jogos com a seleção do Peru, por exemplo, causam recordes de circulação de trocadilhos nas redes sociais) e, simplesmente, poder desfrutar de algo que, bem no fundo, é sim entretenimento, no sentido de que toca muito mais na emoção que na razão.
O desafio da TV na cobertura que faz da Copa é justamente equilibrar ambas as coisas – fazer jornalismo e promover entretenimento; informar, mas também divertir; falar de assuntos leves, mas não fugir da densidade inerente a um tema desse peso. E para quem acha que não, há vários aspectos de peso quando pensamos numa Copa do Mundo. Apenas para listar alguns: as possibilidades de que haja corrupção num evento desta magnitude (e todos os escândalos recentes envolvendo a gestão da FIFA parecem esquecidos na cobertura televisiva); os diversos sentidos culturais que se carregam junto ao esporte (pois, no fim, nos interessa mais a narrativa anexada ao futebol do que os resultados em si); as diferenças entre os gêneros que ainda consolidam o futebol como um esporte misógino, um território de homens (e é absolutamente sintomático disso que só em 2018 tenhamos, pela primeira vez, uma Copa narrada por mulheres, numa iniciativa da FOX Sports, e não da TV aberta).
Enfim, são muitas as questões possíveis a serem levantadas acerca desta cobertura, que se renova a cada edição deste grande evento. Há ainda muita Copa pela frente e muita coisa para acontecer. Mas quero tratar aqui especificamente um ponto relativo a ela, que é a abordagem que é feita pela cobertura jornalística em relação ao país a que a hospeda.
O desafio da TV na cobertura que faz da Copa é justamente equilibrar ambas as coisas – fazer jornalismo e promover entretenimento; informar, mas também divertir; falar de assuntos leves, mas não fugir da densidade inerente a um tema desse peso.
Creio ser possível dizer que um dos grandes trunfos de uma Copa do Mundo é a capacidade de nos trazer um pouco do seu país sede. A Copa, de alguma maneira, toma o “clima” daquela cultura e o transfere para todas as partes do mundo. Sendo assim, a Copa de 2008, na África do Sul, nos levou para perto da terra de Nelson Mandela, com seus tristes episódios históricos, mas também com sua inerente alegria, refletida nos ritmos hipnóticos dos tambores africanos. A Copa brasileira foi festiva e buscou trazer um tom da leveza que normalmente se associa ao país (menos para nós, brasileiros, para quem ela foi trágica, por motivos que todos sabemos).
Esse tom leve presente, por exemplo, na cerimônia de abertura da Copa de 2014 – claramente configurada para que a TV apresentasse o país pelo mundo todo de acordo com certas perspectivas -, mesclou-se com mensagens de cunho político. O “samba, carnaval e caipirinha” pelo qual o Brasil é estereotipado estava lá, certamente, mas havia algum esforço para representar as demais nuances da complexa cultura do Brasil, um país de dimensões continentais.
Por isso tudo, atento aqui ao desafio que é representar, por meio do jornalismo televisivo, um país distante (geográfica e culturalmente) como a Rússia. De modo geral, creio que sabemos pouco da Rússia, localizada no Leste Europeu, e não exatamente um dos destinos mais cobiçados pelos turistas brasileiros. Por isso mesmo, a cobertura televisiva acerca da Copa tem representado, sobretudo, um olhar turístico, típico de um especial do Globo Repórter – ou seja, um olhar curioso, algo explorador (no sentido de que busca “tirar” algo do local que visita, muitas vezes de forma predatória) e pouco interessado em, de fato, ir além da superfície. Não à toa, os elementos lembrados são os mais batidos: as matrioskas (que, inclusive, chegaram a batizar um especial da Globo com mães de jogadores); as comidas típicas; as belezas exuberantes da arquitetura; a influência da Rússia no Paraná formado por seus imigrantes (quer pauta mais forçada que essa?).
Não obstante, há um elemento importante que merece ser destacado da cobertura: o fato de que a Rússia é um país de delicada situação política, em que muitos dos direitos essenciais dos indivíduos são cerceados ou coibidos. E a TV – especialmente na reportagem de rua que enche os espaços entre os jogos – tem nos lembrado isso a todo instante, mesmo em clima de festa: de que, por exemplo, demonstrações públicas de afeto são proibidas aos homossexuais; de que os inimigos de Putin estão sempre sob ameaça permanente; de que, certamente, há no país um clima tenso de insegurança constante (e não por acaso, diria, um acidente envolvendo um táxi foi rapidamente posto sob suspeita de ataque terrorista).
É um ganho, ao que me parece, dessa cobertura da Copa, e um provável legado a ser deixado pelo evento – a ideia de que há, sim, informação relevante a ser passada à população para além do clichê do “pão e circo”. Acompanhemos os próximos capítulos.