Fazendo jus ao ditado de que “o ano no Brasil começa apenas depois do Carnaval”, este mês de março tem dado espaço a várias estreias televisivas e ao retorno de programas já consolidados nas grades, mas que permaneceram em “férias” desde o fim de 2016. Nesta semana, Record e SBT reestrearam seus talk shows – respectivamente, Programa do Porchat e The Noite, comandados pelos comediantes e apresentadores Fábio Porchat e Danilo Gentili.
É curioso notar que os programas, que retornaram na mesma semana, fundamentam sua existência numa espécie de oposição entre eles, assumida publicamente em um certo tom de brincadeira – Porchat, no primeiro programa, comemorou sua volta, e disse que a única coisa que o deixaria mais feliz é se Gentili tivesse mais dois meses de férias.
O tom, obviamente, é de humor, tal como se esperaria de dois comediantes, ainda que se saiba que a rivalidade entre as atrações vai além da figura dos seus apresentadores e tem a ver com a própria visão de mundo que os programas carregam – e, por consequência, os espectadores que representam. Por mais que mantenham uma fórmula razoavelmente próxima – são talk shows protagonizados por profissionais conhecidos no stand up comedy, mesclando em seu formato entrevistas com subcelebridades, a interação com elenco de apoio e quadros dos quais os próprios participam – são diametralmente opostos em aspectos mais profundos.
Enquanto o Programa do Porchat se associa a uma certa visão progressista (ou, para usar os termos polarizados do momento, “de esquerda”), o The Noite representa a camada da população que se identificaria à visão mais conservadora ou “de direita”. É comum que Porchat faça piadas que atacam indireta ou diretamente o governo Temer, além de mencionar a palavra “golpe” diversas vezes ao tratar de episódios políticos. No entanto, é bom lembrar que o tom supostamente progressista da atração costuma ser relativizado frequentemente, fazendo circular certos discursos os quais poderíamos perfeitamente categorizar como o temido “politicamente incorreto” – como o famoso episódio em que zoou com Rita Cadillac.
O The Noite, por outro lado, é bem mais explícito. Seu tom é o do escracho e de uma espécie de denúncia daquilo que os chamados “esquerdopatas” estariam fazendo com o país: o cerceamento da liberdade de expressão ao se começar a categorizar tudo num mesmo balaio das palavras proibidas, procurando pelo em ovo. Assim, o fim do direito de dizer qualquer coisa seria também o fim do humor. Nas edições do The Noite, o tom conservador é visível em praticamente todos os episódios, seja de forma explícita ou velada.
No retorno dos dois programas, algo os uniu, como observou o jornalista Maurício Stycer: seria a primeira vez que ambos iriam ao ar sem a “concorrência” do mais famoso talk show brasileiro, protagonizado por Jô Soares. Ambos os programas optaram por brincar com isso. A equipe de Porchat bolou um “Leilão de relíquias do Programa do Jô” (ao meu ver, sem muita graça), no qual o apresentador e o comediante Paulo Vieira compravam heranças do programa da Globo. O tom, portanto, era de homenagem e respeito.
Aqueles que se rebelam contra as palavras – e as desnaturalizam e explicitam seus sentidos etimológicos – estariam, na verdade, sendo vítimas de um pensamento político e tornando o mundo mais chato.
Já a atração de Danilo Gentili também optou por referenciar o programa do Jô, mas o utilizou por meio da paródia e da ironia. Brincou que estrearia o programa Gentilíssimo, ao invés do The Noite – uma versão mais sofisticada e erudita do programa original, com a banda tocando jazz (com claras referências ao Sexteto do Jô e ao alto grau de instrução do apresentador). As “homenagens”, no entanto, foram usadas com fim jocoso – serviam claramente para um reforço da importância da manutenção do caráter “politicamente incorreto” do The Noite na grade televisiva.
Explico melhor: no quadro, Gentili aparece como uma espécie de dândi refinado e enfadonho, o qual ofereceria ao espectador elementos de moda, etiqueta, cultura e gastronomia sob um “olhar gentilíssimo”. Em certo momento, o comediante Leonardo Lins, que representava um colunista de fofoca, anuncia as novas: em São Paulo, ocorreria um “mutirão pela dívida histórica”, no qual seriam avaliadas coisas como a “apropriação cultural”. “Estaremos lá com nossos talões de cheque. Fazemos questão de pagar a dívida histórica à vista”, arremeda Gentili.
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O chiste faz referência à tal polêmica acerca do conceito de apropriação cultural, fartamente discutida nas últimas semanas (chegou a inspirar uma interessante coluna da jornalista Eliane Brum), e que se tornou uma espécie de gota d’água aos que desconfiam dos efeitos nocivos de uma reconhecida patrulha pelo politicamente correto. Por trás de uma piada aparentemente light, há um tom agressivo forte e condizente com o discurso do programa nestes últimos anos.
Por fim, o Gentilíssimo se encerra com uma provocação: Danilo Gentili recebe uma ligação de Sílvio Santos, que cobra que o apresentador volte à atração original, pois a audiência estaria caindo. Ou seja, quanto mais erudito o programa se torna, mais chato fica e menos agrada ao público. Assim, numa brincadeira com o próprio SBT, Silvio Santos por fim teria cortado o novo programa para exibir o Chaves, a atração coringa da emissora quando nada mais dá certo.
Todo este episódio me provoca, por fim, a reflexão: por que, afinal, a tal “patrulha do politicamente correto” incomoda tanto? Tiraria algumas pistas a essa pergunta nas respostas a um tweet do jornalista Alexandre Garcia, que espalha uma suspeita de que a postura pelo “politicamente correto” seria um sintoma de uma mente manipulada pela tal “patrulha esquerdopata” e vítima de uma obediência bovina aos professores de História (?). Ou seja, aqueles que se rebelam contra as palavras – e as desnaturalizam e explicitam seus sentidos etimológicos – estariam, na verdade, sendo vítimas de um pensamento político muito maior e tornando o mundo mais chato.
Consigo entender apenas algumas partes dos argumentos, no que diz respeito de que, muitas vezes, reivindica-se uma mudança pelo discurso, pelo uso das palavras, mas que elas mesmas não são mais importantes que aquilo que elas representam. Ou seja, o buraco é mais embaixo. Dito de outra forma: não adianta nada parar de chamar uma pessoa com deficiência de “retardado” ou “mongoloide” se, bem no fundo, o indivíduo permanece nutrindo a mesma desconsideração e desrespeito (por vezes, disfarçado de “bons” sentimentos, como a pena e a comiseração) por estas pessoas.
Por outro lado, a “patrulha dos Gentili” se esquece da importância da palavra como uma das poucas formas pelas quais acessamos o mundo. Palavras não são apenas palavras, mas elas mesmas são o princípio da ação. Palavras agem, palavras constroem e destroem, palavras têm o poder de fazer as coisas mudarem. E é por esta razão que os discursos de programas como The Noite – em praticamente todo episódio, há alguma piada machista ou homofóbica – são perigosos, por assentarem tais ideias como naturais, inofensivas.
O mais trágico, no entanto, está no que é menos visível: as piadas do The Noite só fazem sentido porque representam o que uma boa parte da população ainda sente e concorda. Somos nós, portanto, que fazemos este discurso continuar circulando.