Há uma premissa referente à estética do realismo, este estilo literário que, há séculos, seduz os leitores na promessa de conseguir mostrar, por meio das páginas de um romance, a “vida como ela é”. Há uma frase do estudioso Peter Brooks que define de forma surpreendentemente clara o fascínio que o realismo sempre desempenhou com a audiência: segundo eles, o que os romances realistas fazem, em alguma medida, é remover o telhado das casas das pessoas para que nós possamos espiar a vida ocorrendo lá dentro, sem interferências.
A frase é interessante pois aponta a uma constatação: a atração que nós temos por bisbilhotar a realidade dos outros é antiga, e ela contempla não exatamente olhar os grandes acontecimentos, mas o ordinário, o cotidiano, aquilo que acontece quando parece que nada de muito importante está ocorrendo. É no “nada”, na mera rotina diária, que está a grande riqueza da vida, e por isso não conseguimos desviar os olhos quando temos a oportunidade de espiar a janela dos outros. Tem algo de voyeurístico, sim, mas também tem algo de essencial aí.
Isto tudo talvez ajude a explicar porque os anos passam e os reality shows continuem estranhamente fascinantes a boa parte da audiência. Eles não param de surgir nas emissoras: temos realities competitivos, de culinária, empresariais, de superação, além daqueles que trazem mera convivência humana. O cardápio é vasto e oferece opções para todos os gostos.
O programa Troca de Esposas, da Record, talvez não seja a escolha mais gostosa do menu, mas tem bons atrativos – não é tão atrativo no quesito reality, mas é bastante atraente no quesito realismo. Explico: ainda que não preze exatamente na espontaneidade dos participantes e suas interações (fator importante no formato), ele agrada justamente por nos fazer sentir como semideuses capazes de espreitar pelas janelas e pelos tetos de pessoas que em nada se parecem conosco – ou não. E é justamente aí que está a graça deste guilty pleasure.
A graça do programa é, de certa maneira, sua maior fragilidade, pois tudo acaba soando um pouco forçado. Como as famílias são aproximadas por suas diferenças, os conflitos são quase como empurrados para que aconteçam na frente da tela.
A premissa do programa é bastante simples e já testada várias vezes na TV. Em cada episódio, há uma troca entre famílias, e uma mulher (ou um homem, em menos casos) vai viver, por uma semana, na casa de uma família diferente, e precisa se adaptar, ou não, às regras estabelecidas lá. A ideia é estimular o confronto entre universos: que uma pessoa vá parar na casa de um grupo que não tem nada a ver com o seu. Troca de Esposas é, de fato, uma espécie de aventura antropológica: ele oferece uma espécie de viagem às neuroses alheias, o que é algo irresistível.
A graça do programa é, de certa maneira, sua maior fragilidade, pois tudo acaba soando um pouco forçado. Como as famílias são aproximadas por suas diferenças, os conflitos são quase como empurrados para que aconteçam na frente da tela. Por exemplo: uma família negra de ativistas da moda plus size troca de lugar com uma família em que a mulher é militar e adepta de uma alimentação super regrada. A esposa, que está acima do peso, precisa desempenhar a mesma rotina de exercícios que a outra, enquanto o seu marido é tolhido continuamente pela outra esposa para que deixe de comprar doces para os filhos. O conflito todo soa excessivamente construído para a televisão.
Esta falta de espontaneidade, inclusive, foi denunciada por uma das participantes dos programas, que se mostrou arrependida da sua participação, pois observou que as distorções de sua atuação e as consequências dessa visibilidade foram mais negativas que positivas. O mesmo, aliás, ocorreu com a escritora Clara Averbuck, que participou do Troca de Esposas em 2011 e mais tarde se declarou profundamente lesada pelos efeitos da exposição da sua vida no programa (já debati este assunto nesta coluna da Escotilha).
De todo modo, mesmo com problemas (destacaria também o tamanho excessivo dos episódios, que poderiam ser mais curtos e menos cansativos, além do tom “edificante” da mediação feita pela apresentadora Ticiane Pinheiro, como se toda essa experiência fosse uma forma de chegar a verdades elevadas), Troca de Esposas segue uma diversão irresistível para aqueles que, como eu e tantos outros espectadores, são inegavelmente atraídos para tentar entender como vivem as pessoas no mundo, para por fim entender como há tantas semelhanças a partir das diferenças. E isso, por si só, é suficientemente educativo, sem a necessidade de se fazer um discurso moral em cima disso.