Depois de uma agressiva campanha publicitária que anunciava o retorno de Xuxa à televisão, a Record finalmente estreou o programa Xuxa Meneghel, que realoca a apresentadora em um novo “reinado” (apenas para nos mantermos no léxico que a cerca desde os tempos da Globo). A julgar pelo nível de repercussão nas redes pré e pós estreia, pode-se dizer que a expectativa do público e da imprensa era alta – mesmo que fosse, em alguma medida, apenas para ter motivo para falar (mal) sobre deste personagem midiático absolutamente idiossincrático.
Xuxa, como todos sabemos, faz parte daquele rol das grandes estrelas que alcançaram patamares estratosféricos de celebridade e desenvolveram uma vida configurada pelos holofotes – quase como se a existência destas pessoas se definisse apenas pelos momentos passados sob o escrutínio público.
É preciso ter isto em mente para tentar entender quem é a Xuxa que agora se apresenta ao seu público pela Record. A publicidade divulgada pela emissora antes e após a estreia dá pistas interessantes: recuperando imagens do Instagram pessoal da apresentadora, as peças publicadas em jornais anunciam que agora veríamos a Xuxa que “ri de si mesma”, que assumidamente fala besteiras e aceita que riam dela; a Xuxa que “não foge das polêmicas”, diz outro anúncio que lembra que ela mudou seu avatar em apoio à legalização do casamento entre pessoas no mesmo sexo nos Estados Unidos.
A promessa, portanto, é o oferecimento da Xuxa “verdadeira”, da vida privada, que, supostamente, não podia vir ao olhar do seu público na Rede Globo. A estratégia da Record, evidentemente, tira proveito de um “movimento anti-Globo” que repercute em um cenário em que o público, teoricamente mais informado pelo vasto acesso aos meios de comunicação, tem como postura a desconfiança quanto às mídias, especialmente as hegemônicas (leia mais aqui).
A Xuxa ofertada pela Record se situa na mesma região limítrofe de tantas décadas: alguém sempre na tensão da linhagem aristocrática a qual pertenceria e da ‘maldição’ de permanecer sendo gente como a gente.
A Xuxa que retorna na Record é, certamente, uma Xuxa reconfigurada e atualizada com um público que assiste à televisão enquanto tecla e comenta nas redes sociais. A produção é feliz ao pensar num roteiro que prioriza os compartilhamentos e a viralização na internet – vide os comentários algo nonsense soltados pela apresentadora e certos momentos do programa que se conectam diretamente à cultura geek, como quando Xuxa entrevista a menina para quem disse o “aham, senta lá, Claudia”, hoje um meme (veja a cena aqui). Alguns dos entrevistados dos quadros e os membros da plateia – prioritariamente GLS – mostram ainda que Xuxa finalmente encontrou (ou valorizou) o público que a mantém em voga por mais de 30 anos. Não deixa de ser uma doce ironia que isto ocorra em uma emissora religiosa.
Curiosamente, ainda que a campanha priorize a “Xuxa real”, a personagem ofertada pela Record se situa na mesma região limítrofe de tantas décadas: alguém sempre na tensão da linhagem aristocrática a qual pertenceria e da “maldição” de permanecer sendo gente como a gente, não importa o quão famosa tenha se tornado. Ou seja, alguém que se satisfaz no “trono midiático” mas não deixa de ter um certo sofrimento pelas necessidades cotidianas que não podem mais ser supridas (ser uma pessoa anônima, apaixonar-se desinteressadamente por alguém, enfim, ser uma mulher como todas).
Esta dualidade entre proximidade e distância se revela no programa o tempo todo, como quando a produção traz ao palco diversos fãs que a idealizaram e construíram o mito da rainha.
Por outro lado, o fato de Xuxa ter adquirido uma vida essencialmente pública reforça uma sensação de desconfiança quanto à suposta revelação da Maria da Graça “real”, como se a estes habitantes do Olimpo midiático só fosse permitido expor-se de uma forma calculada.
A Xuxa mais “relaxada” da Record, que faz comentários algo magoados e lança indiretas à antiga emissora, me fez lembrar de quando a apresentadora participou, em 2012, do quadro “O Que Vi da Vida”, do Fantástico, dando um longo depoimento que mais parecia uma terapia pública (veja abaixo).
Ainda que tudo ali indicasse estarmos vendo a Xuxa “plebeia”, talvez pela primeira vez – para refrescar a memória: na entrevista, ela falava sobre seus relacionamentos com Ayrton Senna e Pelé, sobre seus desejos e hormônios e revelava ter sofrido abuso sexual na infância – a reação do público nas redes sociais foi sintomática.
Muitos expressaram certo cinismo quanto à genuinidade do que ali se exibia, chamando a entrevista de “orquestrada” e “teatral”. Ou seja, para os olimpianos, sustentados pela máquina das mídias hegemônicas, só seria permitido exibir-se enquanto personagem – mesmo que estejam encenando a si mesmos, o eu por trás da “máscara”.
Isto me faz lembrar das origens da distinção entre a vida privada e a pública. Para os gregos antigos, a verdadeira vida era aquela que acontecia em público, enquanto o domínio privado, limitado na esfera do domicílio e da família, era o espaço em que os seres humanos viviam por questão de necessidade, antes que de escolha. Portanto, a esfera privada era compreendida como sinônimo de “privação/ estar privado de”: significava estar privado de coisas que definiriam a vida humana, como a possibilidade de conquistar algo mais duradouro que a vida em si. A vida de Xuxa, no sentido também fortalecido pela Record, se definiria na esfera do mais importante, da rainha que constrói e governa algo maior que si mesma.
Aparentemente, no intuito de oferecer ao público a Maria da Graça, aquela que se revelaria quando Xuxa baixa a guarda, o novo programa Xuxa Meneghel se utiliza das mesmas regras que a consolidaram enquanto personagem cuja vida pertence a todos. Para um público que se porta como detetive das mídias, sempre sedento para caçar os momentos em os mecanismos da máquina se desnudam, talvez isto seja mais que suficiente para garantir o sucesso da atração da Record.
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