Uma das cenas mais emblemáticas do cinema brasileiro é, sem dúvida nenhuma, a de Fernanda Montenegro na chuva em A Falecida (1965), de Leon Hirszman na direção e com roteiro de Eduardo Coutinho. Não apenas por conta da sua qualidade técnica e do movimento de câmera que, ao longo de todo o filme, é sempre muito bem ensaiado, mas também por toda a significação que aquele momento representa para a protagonista: um desejo de escape da vida terrena por meio da chuva que cai e que, por fim, acaba completando o seu desejo.
O primeiro curta-metragem de Hirszman, Pedreira de São Diogo (1962), lançado como um dos segmentos de Cinco Vezes Favela, um dos precursores do que seria o Cinema Novo no Brasil, demonstra em Hirszman um realizador ainda muito focado em questões que eram essenciais para seu local de formação: o Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional de Estudantes, a UNE. No curta, que conta a história de uma favela que corre o risco de desabamento por causa da explosão de uma dinamite, há ainda muito a representação de uma alteridade com relação a uma classe oprimida.
Já em A Falecida, baseada na obra de Nelson Rodrigues, a trajetória de Leon Hirszman enquanto cineasta faz uma curva diferente e representa não apenas uma estética da miséria, que era tão comum ao Cinema Novo, mas sobre uma classe média baixa ainda muito atrelada ao misticismo (é só lembrar que na primeira cena do filme, Zulmira já aparece indo consultar uma cartomante para que pudesse saber do seu futuro).
É inegável dizer que A Falecida se encaixa como um dos grandes filmes do cinema brasileiro.
Como é comum às obras rodrigueanas, há sempre uma crítica feroz à hipocrisia e à moralidade da sociedade brasileira. No caso do longa de Hirszman, não é diferente – o caso de uma mulher que é obcecada pela morte e tenta encontrar em tudo um motivo para que possa, finalmente, descansar eternamente; o caso do marido que é mais propenso a discutir futebol com os amigos do que sanar a condição de sua esposa, e, por fim, o caso da relação extraconjugal, tão comum às obras de Nelson, que fazem com que o desfecho do filme se torne ainda mais revelador.
Por outro lado, uma questão que é extremamente essencial, especialmente em tempos que a questão do gênero tem sido colocada em pauta, é o fato de que a personagem de Fernanda Montenegro não reconhece que seu sofrimento não nasce apenas da estranheza ao mundano, mas principalmente por conta da sua condição enquanto mulher na sociedade. No fim das contas, acabamos percebendo que Zulmira não deseja a morte apenas por uma questão patológica, e sim para finalmente se libertar das amarras de um marido que não lhe proporciona o que ela deseja e dos comentários de uma vizinhança conservadora.
Há também bastante clara a problemática da culpa, a dicotomia entre o viés hedonista da relação de Zulmira com o homem rico, e do ascetismo da sua vida comum limitada por uma sociedade moralista. Por fim, a personagem acaba encontrando na chuva, um elemento à construção da narrativa que é tão natural quanto o seu próprio anseio de fugir dali, como um componente de catarse para a sua condição.
É interessante que o filme de Hirszman não foi tão aclamado pelo público, especialmente pelo público de classe média, pelo qual o filme mais era representativo. O crítico e historiador de cinema Laurent Desbois vai dizer que é apenas no próximo longa-metragem do diretor que talvez ele faça um mea culpa ao seu próprio público: em Garota de Ipanema (1967), a sofrida Zulmira é substituída pela modelo Helô Pinheiro; a morbidez do subúrbio carioca, pelos calçadões da praia de Ipanema, e a trilha sonora, pelo som de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
Independente da sua recepção diante do público, é inegável dizer que A Falecida se encaixa como um dos grandes filmes do cinema brasileiro por abordar questões tão comuns ao seu tempo, como o misticismo, a questão do gênero e a moralidade.
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