Desde que o cinema ganhou cor, é ponto pacífico da realização de um filme atribuir simbologia às tonalidades. É muito comum vermos o vermelho representando a paixão, o azul associado a fortes personalidades e o verde recorrentemente relacionado à natureza humana, por exemplo.
Entretanto, houve um tempo em que era muito mais complicado produzir um filme colorido, e os realizadores precisavam encontrar maneiras diferentes de construir a lógica visual de seus trabalhos. Um longa-metragem praticamente impecável nesta construção é Aconteceu Naquela Noite, de Frank Capra, lançado em 1934.
O filme de Capra é uma das maiores referências do screwball comedy, gênero que se popularizou nos Estados Unidos após a crise de 1929 e tem como grande característica colocar à prova a masculinidade de um personagem homem, normalmente de forte personalidade, a partir de uma figura feminina. Em Aconteceu Naquela Noite, esta figura é Ellen Andrews (Claudette Colbert), filha de um magnata de Wall Street, que, após uma discussão intensa com o pai no barco do milionário, pula na água e foge nadando. O motivo? Seu pai, Alexander Andrews (Walter Conolly), se mostra veementemente contra o casamento que sua filha está prestes a consolidar com King Westley (Jameson Thomas).
Dessa maneira, a jovem decide ir, por conta própria, até Nova Iorque encontrar seu noivo. Em uma estação de ônibus na Flórida, a vida da moça se cruza com a de Peter Warne (Clark Gable), excêntrico jornalista, que, recém demitido, propõe ajudar Ellie em troca de uma reportagem exclusiva sobre a moça.
Apesar da produção conturbada – Capra, Gable e Colbert não tinham a melhor das relações -, Aconteceu Naquela Noite foi o primeiro filme a ganhar todos os cinco prêmios mais importantes do Oscar: melhor filme, diretor, roteiro, ator e atriz. Entretanto, o aspecto que merece maior destaque no longa de Capra é outro: o figurino. Sem o preciso trabalho de Robert Kalloch, o filme perderia praticamente toda sua força de linguagem.
Na primeira aparição de Ellen Andrews, ainda no barco do pai, a jovem está com um vestido claro, totalmente liso, exatamente como vida associada à riqueza de seu pai: sem percalços ou desvios. Após sua fuga, a moça adquire roupas novas, que mantém praticamente até o final da projeção: saia preta e casaco com listras diagonais. O novo padrão de sua blusa representa o desprendimento de sua vida antiga, com as linhas simbolizando os múltiplos caminhos que sua aventura poderia seguir.
Peter Warne, por sua vez, é mostrado utilizando um terno tradicional e sobretudo, mas com um cachecol repleto de pequenos quadrados curvados. Conforme os personagens se conhecem e passam a conviver no mesmo contexto, o contraste entre linhas e quadrados distingue a lógica visual de cada um, o que hoje é normalmente feito por cores.
O roteiro de Robert Riskin enfatiza o início conturbado da relação de Peter e Ellen. O metódico jornalista exige que Ellie faça tudo da maneira como ele mandar, além de ironizar e criticar as origens ricas da moça, frequentemente gerando situações desconfortáveis. Entretanto, a real distância e desaprovação só é comprovada quando, ao se ver sem outra opção, Ellen senta-se ao lado de Peter no ônibus. A jovem adormece e, quando acorda, percebe que está coberta com o casaco do repórter. Enfurecida, devolve rapidamente as roupas e desce do ônibus. Naquele ponto, ela não queria contato com nada que viesse daquele homem, ainda não permitia que Peter Warne entrasse em sua vida.
Sem o preciso trabalho de Robert Kalloch, o filme perderia praticamente toda sua força de linguagem.
O longa começa a deixar clara a aproximação do casal em um segundo momento, no ônibus. Após uma parada, os passageiros retornam e Ellen senta-se ao lado de Oscar Shapeley (Roscoe Karns), que imediatamente começa a paquerá-la. Peter Warne está ao lado, mas na janela oposta.
A genialidade da condução de Frank Capra coloca Ellie posicionada no corredor, enquanto Shapeley está na janela, evitando que a moça pudesse tentar desviar o olhar para o lado de fora, demonstrando desinteresse. Ao mesmo tempo, o diretor dá à cena uma grande profundidade de campo, permitindo que Peter seja visto ao fundo, avaliando a situação, até que finalmente age dizendo que gostaria de sentar ao lado de sua “esposa”. Os três trocam de lugar de forma a colocar Ellen na poltrona da janela e Peter ao seu lado, onde ela estava anteriormente, num movimento que encerra a conexão entre ela e o homem que a paquerava. Warne então a oferece seu cachecol, e pela primeira vez, ela aceita utilizar uma peça de roupa dele. Mais do que isso, ela aceita que o jornalista entre em sua vida, por mais que não demonstre com palavras.
Em mais um percalço da viagem, o ônibus atola em um lamaçal em meio a uma forte tempestade e só pode continuar o percurso no dia seguinte. Peter então encontra um hotel de beira de estrada e aluga um quarto para os dois, pois era mais barato do que quartos separados. Peter faz questão de demonstrar que não há nenhum sentimento ali, mas, com todos os gestos anteriores, o espectador sabe que é apenas teimosia.
A mala com as novas roupas de Ellen havia sido roubada, o que a deixava apenas com a roupa do corpo. O interminável casado listrado. Peter também mantinha o mesmo visual, com terno e cachecol quadriculado.
Reforçando seu metodismo, o repórter impõe, com um edredom pendurado em uma corda, uma divisão no quarto, deixando claro que os dois ali, no mesmo lugar, era mera questão de praticidade. Normal até aí, não fosse a sutileza do filme em utilizar um edredom perfeitamente xadrez. Sim, a união das linhas do casaco de Ellen com os quadrados tortos do cachecol de Peter. A separação entre os dois já nascia enfraquecida. Por si só, já é um detalhe incrível, mas se torna arrebatador quando, logo depois, Peter se despe parcialmente em frente de Ellie, em um gesto simbólico de exposição e crueza. Ele finalmente se abria para ela.
A inteligência da lógica do figurino de Kalloch permite que o roteiro mantenha os gestos românticos sempre associados às roupas, como quando Peter empresta seu pijama para Ellie, ou quando o rapaz manda passar o casaco da jovem. Dessa forma, o filme se mantém fiel ao gênero screwball, pois, em seus diálogos, as fortes personalidades dos personagens, o humor irônico e a implacável “guerra dos sexos” são constantemente destacados. Além disso, quase toda cena que ressalta uma peça de roupa vem acompanhada de algum comentário sugestivo, como um discreto elogio em meio a uma relação por vezes conturbada.
Com Peter e Ellen já subjetivamente próximos, até a lógica visual de ambos é subvertida. Se antes eram antagônicas, agora as listras do casaco de Ellen combinam com as da gravata de Peter. Praticamente não se vê mais o cachecol. A essa altura, o espectador deseja e espera que o casal finalmente assuma, em palavras, seu sentimento, mesmo sendo bombardeado por obstáculos que, em um piscar de olhos, colocam Ellen já vestida para se casar com King Westley, o que enfatiza o derradeiro detalhe do figurino falante do longa de Frank Capra.
Horas antes de seu casamento, Ellen, já com seu vestido, conversa com seu pai a respeito do casamento. O olhar triste e os movimentos errantes da moça logo são percebidos pelo magnata, que não hesita em perguntar, retoricamente, se ela estava se sentido bem. A esse ponto, o desconforto aparente de Ellie em seu vestido de noiva, totalmente liso, escancarava que, apesar dos percalços, o filme teria o desfecho esperado. Dito e feito. Após mais uma impulsiva fuga de Ellen, o reencontro com Peter acontece, e, o que as roupas já previam desde os primeiros planos do filme, finalmente acontece, e o longa é brilhantemente encerrado por um plano recheado de simbolismo: a queda do edredom xadrez da corda que o pendurava.
Aconteceu Naquela Noite é a prova de que o cinema se faz de sutilezas. O filme de Frank Capra é uma percepção pura da força da arte, que consegue representar os mais profundos sentimentos humanos a partir de peças de roupa. É, por mais paradoxal, um engrandecimento da simplicidade.
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