Depois de Que Horas Ela Volta?, Anna Muylaert entrou definitivamente nos radares do público brasileiro. Mas sua trajetória no cinema é extensa e muito bem-sucedida. Dona de um talento incrível como roteirista (destacando-se as séries Filhos do Carnaval e Alice, ambas produções da HBO, e o longa-metragem O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias), Anna dirigiu inúmeros curtas até estrear na direção de longas com Durval Discos, uma estreia para lá de espetacular, ganhando prêmios em cinco festivais, entre eles o de melhor filme no Festival de Cinema de Gramado e de melhor roteiro no Torino Film Festival.
Mas é impossível negar que não seja Que Horas Ela Volta? o responsável por ampliar a percepção do público a respeito de seu cinema. E cerca de um ano depois (ainda que estivessem sendo produzidos concomitantemente) a diretora retorna com mais um filme em que demonstra sua habilidade em tratar de temas complexos sem subestimar o público.
É importante fazer duas análises separadas sobre Mãe Só Há Uma. A primeira é associada à sua filmografia. Neste sentido, seu novo filme, apesar de muito potente, parece estar um degrau abaixo de seu antecessor. A segunda é desvinculada de suas obras anteriores. Deste modo, Mãe Só Há Uma é um filme complexo, agridoce e necessário por sua contemporaneidade.
O filme parte de uma história real que chegou ao conhecimento da nação em 2002, quando foi solucionado, e ficou conhecido como “O caso Pedrinho”, o menino que descobriu aos 16 anos que havia sido roubado de seus pais biológicos quando era um bebê. Neste ponto, Anna evoca novamente seu talento ao não dar contornos óbvios à trama, desvencilhando o longa de um “filme de tribunal” ou mesmo policial.
Muylaert debate identidade de gênero sem evocar uma sílaba sequer, absorvendo uma temática urgente no país, colocando a obra em sintonia com nosso cotidiano.
Mãe Só Há Uma tem Pierre como protagonista (Naomi Nero em uma estreia encantadora nas telas), um garoto que subverte as convenções tradicionais de gênero. Pierre pinta as unhas, usa lápis no olho, lingerie, vestidos, se relaciona sexualmente com meninas e também fica com garotos. Contudo, nada disso é o definitivo ou fundamental à trama, apenas está lá, apresentado de forma natural no subtexto do longa-metragem. Muylaert debate identidade de gênero sem evocar uma sílaba sequer, absorvendo uma temática urgente no país, colocando a obra em sintonia com nosso cotidiano.
Ao descobrir que foi roubado, sua “mãe” é presa e Pierre levado a morar com seus pais biológicos. De maneira metafórica, o garoto é “roubado” novamente, retirado de seu centro de “normalidade” e jogado em um turbilhão de informações que mais causam choque e desconforto do que uma sensação de pertencimento. Trocando em miúdos, Pierre é desabitado.
Isso passa a gerar inúmeros conflitos entre ele e seus pais, especialmente com Matheus (interpretado pelo cirúrgico Matheus Nachtergaele), que passa a ceder constantemente ao filho, que pratica uma espécie de chantagem emocional ao manter seus pais sempre à flor da pele, tensos com o medo de que ele os abandone. E no que talvez seja a melhor sacada da diretora no filme, a atriz Dani Nefussi (de Bicho de Sete Cabeças) interpreta as duas mães, biológica e adotiva, levando o “mãe só há uma” à literalidade.
Mas apesar de todo potencial, Mãe Só Há Uma sofre um pouco com problemas de ritmo, esticando a trama ao ponto de torná-la repetitiva em determinados momentos, e ainda que haja um clímax, ele demora a chegar. Soma-se a isso o fim abrupto que deixa a sensação de um filme sem resolução, o que causa um estranhamento quando analisado o histórico da diretora (que também assina o roteiro).
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