Tudo começa com as imagens de uma enchente tomando conta de comunidades na periferia do Rio de Janeiro. Em seguida, britadeiras em meio a destroços parecem atormentar o protagonista, Sabino, interpretado por Paulo Porto. O ideário imagético criado por Arnaldo Jabor para o longa-metragem baseado na novela de Nelson Rodrigues, O Casamento (1975) é, na verdade, um prelúdio do desastre que estaria por vir. Um dia antes do casamento de sua filha, Glorinha, interpretada pela belíssima Adriana Prieto, que faleceria tão logo o fim das filmagens do filme, o seu pai, Sabino, acaba descobrindo boatos de que o seu noivo havia sido visto beijando um enfermeiro da clínica de um grande amigo seu, Doutor Camarinha.
Entorpecido pela confissão, o senhor então começa a relembrar todos os momentos em que, de alguma forma, a perversão havia tomado conta da sua existência. “Você sabe que sou um homem de bem, sempre fui um homem de bem!”, grita em revelia durante momento de expurgação para um padre. Na verdade, o próprio conceito de “homem de bem” persegue Sabino até o fim da narrativa, quando, em vão, não consegue lidar com as suas próprias “feridas”: sejam as tendências homossexuais, o incesto, a poligamia e a fornicação.
Por outro lado, sua filha, Glorinha, parece estar inserida num contexto parecido com muito mais espontaneidade. Ela começa a se relacionar com o filho do Doutor Camarinha, Antônio Carlos, interpretado por Érico Vidal, um jovem burguês agressivo com problemas dentro e fora de casa, e que acaba se envolvendo com uma miríade de personagens que não são contemplados no seu entorno social, como o próprio enfermeiro homossexual que vivia na periferia carioca. Conturbado, o relacionamento entre os dois acaba tragicamente, porém nenhum parece se arrepender de suas mazelas assim como o faz os filhos da geração anterior, seus pais.
É sabido que o universo rodrigueano é recheado por contradições quanto à moral tradicional, assim como personagens que fracassam em seu papel de “chefe de família” – seja por fraqueza ou por perversão. Por outro lado, os cinemanovistas, ao adaptarem suas obras para o cinema, não apenas retratam esse cenário como também o contestam. Longe da crítica social da nação que permeou o cinema nos anos 60, os anos 70, porém, voltam-se para o enfoque do universo familiar apontando várias contradições do cinema brasileiro.
O Casamento expõe e refuta todas as mazelas de uma cultura patriarcal tipicamente brasileira.
No caso de O Casamento, que não é diferente, Jabor faz um cinema que muito se assemelha ao seu filme anterior, Toda nudez será castigada (1972), porém com uma estética muito parecida com a do seu tempo. Influenciado pelo Cinema Marginal, existem no filme muitas cenas hiperbólicas, como os devaneios do protagonista Sabino até a morte de sua esposa, Noêmia. É como se, de alguma maneira, o romance de Nelson Rodrigues adentrasse os modismos dos anos 70 da sociedade brasileira: seja o conservadorismo de uma geração anterior ou a loucura e a franqueza da geração jovem contemporânea, que se contrapunha ao estilo de vida daquela burguesia que não sabia lidar com suas próprias chagas.
Sob o olhar atento do diretor de fotografia Dib Lutfi e a interpretação e produção de Paulo Porto, O Casamento não chega a ser tão palatável quanto o filme anterior de Arnaldo Jabor, mas constrói indissociavelmente um clímax de desastre e cataclismo quanto à burguesia brasileira. Toda a interpretação e representatividade metafórica presentes no filme dão a impressão de uma extrema bagunça – o que, de fato, era a tônica que o diretor gostaria de passar quanto ao tradicionalismo dos valores patriarcais da família brasileira e que, ao fim, acabam se dissolvendo em autodestruição.
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