O pai da psicanálise, Sigmund Freud, já alertava sobre as consequências das repressão sexual durante a adolescência para a vida adulta. Saber lidar com fetiches e fantasias sexuais de maneira saudável durante a fase de formação, de acordo com o neurologista austríaco, evitaria distúrbios mentais no futuro. É sob esta premissa que o primeiro longa-metragem do diretor e roteirista carioca Felipe Sholl, Fala Comigo (2016), baseia-se.
A carreira de diretor de Sholl pode ser nova, mas como roteirista, não tanto. Seu primeiro curta-metragem, Tá (2007), recebeu o prêmio Teddy Awards de melhor produção de temática LGBT no Festival de Berlim. Também ajudou na roteirização de O fim e os meios (2014), de Murilo Salles, e de Campo Grande (2015), de Sandra Kogut. Com esse currículo, não era de se surpreender que o primeiro longa como diretor traria à tela um cinema de resistência.
“Sempre tive interesse em falar sobre personagens que procuram amor e afeto em lugares improváveis”, explica Felipe em entrevista ao portal Papo de Cinema. E não há nada melhor do que essa frase para explicar o roteiro de Fala Comigo, a história de um adolescente de 17 anos, Diogo, interpretado por Tom Karabachian, que passa seu tempo livre se excitando ao ligar para as pacientes da sua mãe, Clarice (Denise Fraga). Numa dessas interações, ele chama a atenção da Ângela, uma mulher de 42 anos interpretada por Karine Teles, a patroa de Que horas ela volta? (2015).
Por falar em Que horas ela volta?, é muito interessante destacar que nos últimos anos o cinema brasileiro tem se voltado bastante para a temática de uma crítica em relação à classe média urbana em seus mais diferentes aspectos – seja a especulação imobiliária em O Som ao Redor (2012) ou a questão de crescer em um ambiente familiar repressivo, como é o caso de Casa Grande (2015). Este último, além disso, muito se assemelha à temática abordada em Fala Comigo, mas o filme de Sholl vai além e mostra que os problemas familiares de classe média ultrapassam a cadeia econômica: também é sobre sexo, sobre intimidades, sobre segredos e sobre o que a sociedade não aceita, seja por preconceito ou por pouca representatividade.
No caso do filme, isso é posto de maneira muito sutil e singela: o romance de Diogo e Ângela vai crescendo, tomando forma de maneira muito espontânea, quase como no filme Antoine et Colette (1962), de Truffaut. Constantemente, temos a impressão de que é algo incomum, afinal, os dois têm quase 30 anos de diferença. Porém, Felipe nos leva até os limites dessa condição, seja para testar a mentalidade de um espectador que porventura ache a situação estranha, seja para dar mais tônica à narrativa que, em seu final, pode deixar muitas arestas mas também mostra muita resistência às pressões externas.
Fala Comigo consegue ser um filme resistente e delicado ao mesmo tempo.
Uma das cenas mais emblemáticas do filme é, sem dúvida, quando Diogo acorda de madrugada e encontra o pai, interpretado por Emílio de Mello, acordado. Então, durante a conversa entre os dois, o filho apresenta ao pai, que passava por uma crise de casamento com a mãe de Diogo, a música “Freud Sits Here”, da banda Letuce. “Freud sits here/ But he doesn’t tell me/ Where can I sit with him”, é uma das estrofes da música e que simboliza muito bem o ambiente repressivo, que tanto o pai quanto o filho vivenciam dentro da casa, onde a mãe, apesar de psicanalista, não consegue curar feridas aparentemente mais profundas no interior da sua própria família.
Simbolista e ao mesmo tempo realista, resistente e ao mesmo tempo delicado, o cinema de Felipe Sholl em Fala Comigo é singelo e não apela para o sensacionalismo, como seria muito fácil de acontecer por conta da temática tratada. Em tempos de repressão e conservadorismo, o filme, que levou o grande prêmio do Festival do Rio 2016, é um verdadeiro bálsamo. “Vivemos um momento difícil para o Brasil, e espero que o filme faça a pequena parte dele para tornar o país menos conservador”, disse o cineasta ao receber a premiação em entrevista ao jornal O Globo. Há esperanças.
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