Depois de um hiato de 25 anos, a série Twin Peaks, que mudou a história da televisão mundial na década de 1990, ressurge agora para uma terceira e surpreendente temporada, produzida pelo canal pago Showtime e exibida no Brasil pela Netflix. Um de seus criadores, o cineasta norte-americano David Lynch, relembra o mundo, a cada episódio, que é um artista único, dono de uma obra igualmente singular, tanto do aspecto visual quanto narrativo, e sobretudo resistente ao tempo. Em sua filmografia, que inclui clássicos incontestáveis, como Veludo Azul (1986) e Cidade dos Sonhos (2001), O Homem Elefante é um daqueles filmes que merecem ser revisitados.
Lançado em 1980, três anos após Eraserhead, desconcertante longa-metragem de estreia de Lynch, O Homem Elefante foi o responsável por elevar o nome do diretor a um outro patamar: recebida com entusiasmo por grande parte da crítica, a produção foi indicada ao Oscar em oito categorias, incluindo melhor filme e direção, no mesmo ano em que Martin Scorsese e seu estupendo Touro Indomável estavam no páreo, vencido pelo hoje pouco lembrado Gente como a Gente, drama familiar intimista de Robert Redford, que então estreava atrás das câmeras.
Lynch conta, a sua maneira, a história verídica de John Merrick (1864-1890), um homem nascido nos subúrbios de Londres que teve uma vida breve e bastante sofrida. Portador de uma doença genética chamada neurofibromatose (associada a uma outra enfermidade congênita, a Síndrome de Proteus), Merrick, desde menino, teve de conviver com sua aparência assustadora: tanto os ossos quanto os tecidos de sua cabeça eram deformados e davam a ela duas vezes o tamanho normal. Alterações morfológicas em sua espinha dorsal, também decorrentes da condição, lhe dificultavam os movimentos, o fazendo mancar. Um dos braços não se mexia, devido a comprometimentos neurológicos. Mal conseguia falar.
Lynch conta, a sua maneira, a história verídica de John Merrick (1864-1890), um homem nascido nos subúrbios de Londres que teve uma vida breve e bastante sofrida.
Ainda na infância, Merrick, filho da classe trabalhadora miserável em plena Revolução Industrial, foi transformado em atração de um freak show, circo de horrores que fazia dinheiro às custas das desgraças de seus integrantes. Lynch se serve de sua trágica jornada para construir uma obra de grande impacto dramático, mas também visual. Em um primeiro momento, o que se vê na tela é uma espécie de conto de terror gótico, no qual o protagonista é, ao mesmo tempo, vítima e monstro. Sua verdadeira aparência é guardada como um segredo.
A fotografia em preto e branco de Freddie Francis (de Cabo do Medo) se remete ao Expressionismo Alemão – as imagens do show de aberrações evoca O Gabinete do Doutor Caligari (1920), clássico de Robert Wiener no qual o terror surge como metáfora sobre a ascensão do nazismo nos anos que se seguem ao fim da Primeira Guerra Mundial. Lynch, aqui, parece recorrer a essa estética para estabelecer uma atmosfera de terror que tem menos o intuito de dar sustos e mais a função de ser um comentário do diretor sobre as péssimas condições de vida de Merrick.
O horror, na verdade, não está na sua aparência, mas no abuso psicológico ao qual ele é submetido. Se em um primeiro momento ele é apresentado como “o monstro”, aos poucos nos damos conta de que o personagem nada mais é do que vítima de um mundo anômalo, cruel, que o explora para sua diversão e deleite. Só quando isso se torna evidente é que vemos o rosto de Merrick. Suas deformidades, daí, chocam bem menos do que a maldade que o cerca.
O protagonista, vivido pelo extraordinário John Hurt (de 1984), em um segundo momento da trama, é resgatado pelo médico Frederick Treves (um contido Anthony Hopkins, de O Silêncio dos Inocentes), que o leva o hospital onde trabalha. A frieza científica por trás de seu interesse por Merrick ao poucos cede lugar à compaixão e O Homem Elefante, filme e personagem, se transforma diante dos nossos olhos. Deixa de ser a obra de terror que prometia ser, embora a crueldade esteja sempre à espreita, como uma besta prestes a atacar, e se servir da fragilidade de Merrick, que assume a posição de um herói improvável.
No filme, há belíssimos momentos em que Lynch dialoga com outros mestres do cinema. Exemplo disso é a sequência na qual Merrick vai ao teatro assistir a uma peça teatral estrelada pela atriz Madge Kendal (Anne Brancroft, de A Primeira Noite de um Homem), que dele se afeiçoa e se torna uma espécie de protetora. O espetáculo que vê sobre o palco o deslumbra, e faz lembrar os filmes de Georges Méliès (como Viagem à Lua), pioneiro do cinema fantástico na virada do século 20.
Nas mãos de Lynch, O Homem Elefante torna-se bem mais do que um filme baseado em fatos reais. O diretor reafirma seu interesse pelo grotesco, pelos seres desviantes, já manifestado em Eraserhead, e tão presente em toda a sua obra. Ele humaniza o terror, mas também revela o terror no humano.
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