O longa Dente Canino (2009) é cheio de excessos. É extremo o modo como o cineasta grego Yorgos Lanthimos mostra a relação doentia entre um casal e seus três filhos. O pai (Christos Stergioglou), a mãe (Michele Valley), a filha mais velha (Angeliki Papoulia), a filha mais nova (Mary Tsoni) e o filho (Hristos Passalis) vivem presos em seu universo particular muito bem delimitado por muros altos e intransponíveis. O único que sai com regularidade desse ambiente é o pai. Motivo: trabalhar. E, às vezes, levar a segurança da empresa, Cristina (Anna Kalaitzidou), para mecanicamente satisfazer as necessidades sexuais do filho.
Nesta trama dirigida por Lanthimos (responsável pela condução de obras como o horror psicológico O Sacrifício do Cervo Sagrado, de 2017, e o drama histórico A Favorita, de 2018), o comportamento patológico escorre da tela. Os pais impõem aos filhos um rígido sistema de educação completamente peculiar, específico, baseado naquilo que, como genitores, acham correto. Dentre as consequências dessa criação que tem como um dos pilares a proibição de contato com o mundo externo está o uso de vocabulário equivocado. Exemplo: a mãe explica que “zumbis” são “flores amarelas”. Quando o filho depara-se no jardim com duas flores dessa cor, logo comunica a mãe que entrou em contato com zumbis.
O uso justamente desse termo entre tantos que poderiam ser selecionados está longe de ser aleatório no roteiro. É uma gritante demonstração daquilo que pode ser usado para caracterizar em que os três filhos foram transformados. Existe até uma cena na qual uma das filhas, após um episódio de automutilação, parece mesmo compor a imagem convencionalmente atribuída a zumbis no cinema: boca e peito cheios de sangue, movimentos pouco coordenados e caminhada realizada no meio da noite, com baixa iluminação.
As tensões sexuais estão constantemente presentes na trama, seja em brincadeiras que as irmãs descobrem, seja no uso de Cristina como um objeto puro e simples de satisfação fisiológica para o filho. No entanto, se existe certa liberdade sexual nesse comportamento, o que prevalece, em geral, é o puritanismo, a proibição extrema de palavras e ações que remetam a sexo.
Dente Canino não é um filme para multidões. Poucos conseguirão interessar-se pelo que verão. Seja pelo caráter estranho, seja pelos temas delicados, muitos certamente tendem a torcer o nariz. Há cenas fortes de mutilação, maus tratos a um animal e sexualidade mal resolvida.
Outra cena que deixa claro o conjunto de consequências da lavagem cerebral e da limitação que são impostas aos filhos por parte dos pais é aquela na qual uma das filhas dança como espetáculo para a família depois do jantar e inexiste qualquer relação dos movimentos com o ritmo da música executada pelo irmão. Afinal, a menina não tem repertório: sua dança é totalmente intuitiva, baseada naquilo que ela acha que seria o ideal sobre como mover o corpo em harmonia com o som que toma conta do ambiente.
Em sua proposta provocativa de questionar, entre tantas coisas, o comportamento que alguns pais alimentam de proteger em excesso os seus filhos, Dente Canino mostra o quanto dialoga com obras como O Enigma de Kaspar Hauser (1974), do diretor Werner Herzog; e A Vila (2004), de M. Night Shyamalan. Esses dois filmes são exemplos fantásticos de obras que mostram o que o isolamento exagerado pode provocar.
Definitivamente, Dente Canino não é um filme para multidões. Poucos conseguirão interessar-se pelo que verão. Seja pelo caráter estranho, seja pelos temas delicados, muitos certamente tendem a torcer o nariz. Há cenas fortes de mutilação, maus tratos a um animal e sexualidade mal resolvida.
Na plataforma de streaming Telecine, na qual o filme está disponível, ele foi inserido em uma cinelist que tem como título “Filmes Fora do Comum”. Nessa lista estão obras como Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles; Mãe! (2017), de Darren Aronofsky; e Irreversível (2002), de Gaspar Noé. São “alguns dos filmes mais diferentes, ousados e criativos”, segundo a plataforma. Há quem idolatre e mergulhe no encantamento das múltiplas interpretações que essas obras permitem. Há quem abomine.
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