O brasileiríssimo Depois da Chuva, primeiro longa-metragem da dupla Cláudio Marques e Marília Hughes, é um dos melhores filmes nacionais, e não apenas deste ano. Tocante, denso e original, ele se debruça sobre um período pouco explorado pela cinematografia brasileira: a reabertura política e o processo de redemocratização do Brasil.
Ao jogar luz sobre este período, marcado pela confusão de sentimentos do povo brasileiro, Cláudio Marques empresta todas as sensações vividas pelo país – e por ele mesmo, adolescente na década de 1980 – na criação de seu roteiro. Que não se engane o leitor, Depois da Chuva é um filme com teor político, mas não panfletário, no qual a temática é a esperança – ou a falta dela.
Pedro Maia é Caio, um adolescente rebelde, filho de pais divorciados e estudante de um colégio de classe média, na Salvador de 1984. Como boa parte dos adolescentes da época, vivia sob forte influência da música punk e do movimento anarquista. Teorizar, então, contra qualquer ordem imposta fazia parte do “ser adolescente” e “libertário” naquele período.
Ao fazer uma analogia cronológica entre o contexto político nacional e os acontecimentos que permeiam a rotina de Caio, a narrativa disfarça doses cavalares de ironia e simbologia, que poderiam até dar a sensação de serem clichês, mas não o são. Desde a amizade do protagonista com um grupo de jovens anarquistas, as eleições para o grêmio estudantil (e o interesse desmedido de alguns alunos nela) e a música punk, tudo é estratégia utilizada na intenção de abordar várias questões amargas à nossa história.
Ao fazer uma analogia cronológica entre o contexto político nacional e os acontecimentos que permeiam a rotina de Caio, a narrativa disfarça doses cavalares de ironia e simbologia, que poderiam até dar a sensação de serem clichês, mas não o são.
No longa, Caio vai se dando conta que presencia um momento único, tanto em sua juventude como na história do Brasil. A dinâmica do personagem vivido por Pedro Maia (premiado no Festival de Brasília de 2013) muda quando este se apaixona por Fernanda (Sophia Corral), sua colega de escola. Ela também é rebelde e inquieta, porém, sua maior forma de rebeldia é a ternura que encontra no amor pelo jovem estudante.
A relação de Caio com sua mãe, Sônia (Aícha Marques), é preenchida pelo vazio. A personagem parece oca, desgastada pelo divórcio, arrebatada pela tempestade chuvosa de seu conturbado momento emocional. Neste instante, a construção da maturidade do filho rende arestas na convivência com a mãe, ou seja, há algo além dos conflitos ideológicos. Ponto para Aícha, que entrega uma atuação consistente ao criar uma personagem densa, triste e atordoada.
No filme, tudo flerta com a história do Brasil. Entretanto, o roteiro deixa lacunas propositais, forçando o espectador a completá-las com seu conhecimento histórico e sua própria consciência política. E vai além, escancarando a falência de nossas ideologias e a fragilidade de nossa democracia – ou de sua ausência.
A cena do personagem Tales (interpretado pelo ator baiano Talis Castro) transmitindo sua rádio pirata para ninguém é, talvez, uma das mais comoventes do filme, e representa, simbolicamente, como nossas esperanças podiam (e podem) ser silenciadas.
Depois da Chuva é capaz, inclusive, de falar pela ausência. A inexpressiva presença de negros e pardos no filme rodado em Salvador – cidade com maior número de descendentes de africanos no mundo e com 80% da população composta por negros ou pardos (fonte: IBGE) – serve como metáfora à nossa estrutura social e à construção de nosso processo democrático através da manutenção de parcelas da sociedade à margem deste.
Vale mencionar a excelente trilha sonora do filme, com a presença dos grupos baianos Crac! e Dever de Classe, que marcaram época nas décadas de 1980 e 1990. Nancy Viegas, vocalista da Crac!, gravou, juntamente com Mateus Dantas, uma versão do “Poema em Linha Reta”, de Fernando Pessoa, especialmente para o longa. Há espaço ainda para sucessos de Dead Kennedys, Thee Headcoatees e Patife Band.
Como não há certeza de que Depois da Chuva dure muito tempo no circuito cinematográfico de Curitiba (em São Paulo já saiu de cartaz), sugiro que os interessados não deixem de conferir o filme que está em sessão única no Espaço Itaú de Cinema, no Shopping Crystal.
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