M. Night Shyamalan conseguiu uma coisa um tanto difícil dentro do esquema hollywoodiano de fazer cinema. Desde o seu seminal O Sexto Sentido, de 1999, que ele se estabeleceu como uma grife. Os seus filmes têm um estilo próprio e são reconhecidos a quilômetros de distância como tal. Mas há problemas em ser grife. Em linhas gerais, quando o público escolhe por uma marca, o faz porque se sente confortável com aquele tipo de produto. Ou seja, já experimentou e aprovou.
O autor-grife, portanto, terá uma enorme cobrança para não mudar seu modo de filmar, seja por parte do público ou dos executivos dos estúdios. Por exemplo, a impactante reviravolta no final de O Sexto Sentido o acompanha até hoje como uma assombração. Pois a partir dali, a grife Shyamalan passou a ter como principal característica uma profunda transformação de enredo no clímax final, o que é chamado pelos roteiristas de plot twist. Não à toa, o tal plot twist de O Sexto Sentido deve ser o mais rentável da história do cinema norte-americano.
Fragmentado, filme mais recente que estreia agora no Brasil vindo de uma carreira comercial brilhante nos Estados Unidos, é um típico filme shyamalaniano. Estão lá o suspense, os personagens confusos e assustados, o toque incontornável do sobrenatural e a sua reviravolta final. Mas vamos por partes.
No jargão jornalístico, fazia tempo que não agradava público e crítica.
Após o assombroso sucesso de – citando novamente – O Sexto Sentido, Shyamalan entrou na roda da fortuna do cinema norte-americano. E passou a fazer filmes caros para o grande público. Até que em 2013 lançou o mal sucedido Depois da Terra, encabeçado por Will Smith. O longa não deu prejuízo, mas foi muito abaixo das expectativas. Shyamalan, que há duas produções não dirigia mais obras soturnas, foi forçado a voltar a orçamentos enxutos e ao território que, de fato, sabe melhor lidar, o suspense. É aqui que surge Fragmentado, o segundo dentro da produtora Blumhouse Pictures, responsável por filmes como Atividade Paranormal. A Blumhouse é especializada em produzir filmes de terror com orçamentos menores.
Fragmentado surge com um quê de redenção na carreira de Shyamalan, não só pelo gigantesco lucro (foram investidos nove milhões de dólares e, apenas na bilheteria norte-americana, já rendeu 248 milhões), mas também porque depois de muito tempo ele voltou a conseguir coadunar os elementos de seu estilo criando uma narrativa potente. No jargão jornalístico, fazia tempo que não agradava público e crítica.
Na história, três adolescentes são sequestradas e mantidas em cativeiro. Entre elas está Casey Cooke (Anya Taylor-Joy), uma garota introvertida com um passado assustador. Denis, o sequestrador, é um homem com múltiplas personalidades. Ou melhor, Denis é uma das personalidades desse homem, já que convivem com ele outras vinte e duas. Cada uma com um nome, uma profissão, uma condição física e uma identidade absolutamente específica. Assim como na série United States of Tara, do canal Showtime, o personagem tem transtorno dissociativo de identidade, uma doença mental rara e que nem mesmo a psiquiatria é unânime em reconhecê-la. Mas não chegamos a ver todas essas personalidades. As meninas irão conviver sobretudo com três: o próprio Denis, que é meticuloso e tem fobia de sujeira, Hedwig, uma criança de nove anos, e Patricia, uma mulher elegante que, parece, é quem realmente manda em toda a bagunça que tanta personalidade junta causa.
É função de James McAvoy (protagonizou a versão jovem do Professor Xavier na série X-Men) dar vida a todas essas personalidades, algo que faz com virtuosismo. É impressionante a forma como consegue mudar de um personagem para outro, e fazer o espectador perceber tal transformação com uma simples mudança de postura ou mesmo de olhar. Há, por exemplo, uma sequência em que uma personalidade finge ser outra e a atuação de McAvoy consegue trazer para a superfície todas essas camadas, por mais sutis que necessitem ser.
Um ponto fraco do roteiro é a eterna necessidade que Shyamalan tem de explicar nos mínimos detalhes tudo o que está acontecendo. Apenas por isso está justificada a presença da Dra. Karen Fletcher (Betty Buckley), uma psiquiatra que atende diversos portadores do transtorno. Ela tem a teoria (e ela teoriza muito, com direito a palestra explicativa) de que o transtorno dissociativo de identidade pode levar seu portador a ter modificações físicas de acordo com cada uma das personalidades. Na sua concepção, uma personalidade poderia ser diabética e a outra não; uma poderia ser muito mais forte e musculosa que a outra; e assim por diante. É aí onde começa a surgir o sobrenatural e quando Shyamalan, de fato, assina seu novo filme.
Em paralelo, a horda – como em algum momento são tratadas todas essas vinte e três personalidades – passam a falar e temer por algo vindouro e malévolo. O filme irá jogar, assim, com o medo dos personagens e do público, em uma mistura de ceticismo científico e crença. E é aí que surge o terror. Shyamalan consegue com muita competência fazer essa transição de gêneros, passando de um filme de suspense para um de terror psicológico, bem como essa confluência entre um discurso científico (embora didático) para uma acepção paranormal. Ele é menos competente quando o assunto é fugir de certos clichês, mas ele tem até uma desculpa boa para tal, pois Fragmentado é uma obra de gênero. Ou seja, é uma obra que trabalha dentro de certas regras já convencionadas.
Fragmentado é, ainda, uma espécie de spin-off do que para muitos críticos (eu incluso) é considerado o melhor filme do diretor, Corpo Fechado. Inclusive, em entrevista recente, M. Night Shyamalan professou o desejo de fazer a tão aguardada e há tanto anunciada continuação do filme lançado em 2000.
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