Por Victoria Tuler*, especial para Escotilha
Crescer como uma garota não-heterossexual durante a primeira década dos anos 2000 e buscar por algum sinal de representatividade em produtos audiovisuais mainstream foi uma missão árdua – senão impossível. Na TV, havia algum alento em Buffy. No cinema, os raros beijos entre meninas quase sempre aconteciam em contextos problemáticos – como o ápice da rebeldia desenfreada em Aos Treze (2003), ou durante a fuga catastrófica de um hospital psiquiátrico em Garota, Interrompida (1999). Nesse cenário, um filme independente norte-americano em particular poderia ter feito uma esmagadora diferença na auto-aceitação de toda uma geração de garotas – e fez, na de algumas.
Nunca Fui Santa é o título brasileiro questionável e sexualizado de But I’m a Cheerleader, comédia romântica satírica estadunidense lançada em 1999 e dirigida por Jamie Babbit, assumidamente lésbica. O longa gira em torno da história de Megan (Natasha Lyonne, de Orange is the New Black), o perfeito estereótipo de líder-de-torcida-popular-na-escola. Certo dia, a adolescente chega em casa e se depara com uma intervenção de sua família e amigos, que acreditam que ela seja lésbica. Megan considera a acusação uma completa maluquice – afinal, ela é uma cheerleader, e cheerleaders nunca são lésbicas (daí o título original do filme).
Mesmo com a insistência de Megan, seus pais decidem enviá-la para um programa de cura gay chamado True Directions. Lá, ela acaba conhecendo Graham (Clea DuVall, de Veep) e concluindo que talvez, e apenas talvez, líderes de torcida possam, de fato, se interessar por outras garotas.
A diferença, aqui, é que esses adolescentes em particular enfrentam uma jornada difícil para descobrir que sua forma de amar, se relacionar, expressar sua sexualidade e existir é bonita, justa e válida.
Como em qualquer filme sobre amadurecimento, não há nada de estupendo ou surpreendente no desenvolvimento do enredo de Nunca Fui Santa. O espectador mais atento consegue enxergar claramente para onde o roteiro o está guiando, e se deixa ir porque há algo de adorável, doce e devastador em acompanhar a passagem de personagens cativantes para a vida adulta. A diferença, aqui, é que esses adolescentes em particular enfrentam uma jornada difícil para descobrir que sua forma de amar, se relacionar, expressar sua sexualidade e existir é bonita, justa e válida, acima de qualquer expectativa ou estereótipo.
E a diferença, aqui, é que esse foi justamente o motivo pelo qual adolescentes dos anos 2000 não encontraram esse filme nas locadoras, exposto entre Sexta-Feira Muito Louca e Tudo Que Uma Garota Quer.
Embora, como é comum ao gênero, Nunca Fui Santa conte com cenas de sexo que não passam de insinuações sutis, o filme recebeu, nos Estados Unidos, a classificação indicativa NC-17 – o equivalente a um “para maiores de 18 anos” no Brasil. Em comparação, essa foi a mesma classificação atribuída a primeira versão do corte final de American Pie, também lançado em 1999, que contava com uma cena explícita de masturbação masculina.
Após uma longa batalha e o corte de algumas referências a masturbação feminina, Jamie Babbit conseguiu que seu Nunca Fui Santa tivesse sua classificação reduzida para R, que permite a entrada de menores de 17 anos nas salas de cinema acompanhados pelos pais. A diretora considerou que essa censura ainda era exagerada e atribuiu, publicamente, a classificação indicativa severa do filme ao fato de se tratar de uma história sobre adolescentes lésbicas.
A exclusão de parte significativa do público-alvo, em um filme com uma temática delicada o suficiente para que muitos pais se recusassem a acompanhar os filhos ao cinema, forçou uma distribuição mais enxuta que a originalmente planejada. No Brasil, o filme teve um discreto lançamento diretamente em home video.
Em tempos de Com amor, Simon, é um alento saber que a recepção comercial e popular de filmes adolescentes com temática LGBTQ+ mudou muito nos quase vinte anos que separam os dois filmes. Para quem perdeu a oportunidade de assistir uma comédia romântica em que pudesse se enxergar durante a adolescência, fica a recomendação de um longa sem o devido reconhecimento que discute de maneira muito particular a desconstrução dos estereótipos de gays e lésbicas – além de contar com uma sequência final memorável que, em um mundo justo, seria tão relembrada quanto o poema que Kat Stratford (Julia Stiles) declama no último ato de 10 Coisas que Eu Odeio em Você (1999).
* Victoria Tuler de Oliveira, curitibana nascida em 1995. Produtora audiovisual formada pelo Instituto Federal do Paraná. É escritora, roteirista e redatora. Autora do livro “Poemas são como um soco”, publicado em 2017 pela Editora Multifoco. Fã de rap francês, indie pop estadunidense e qualquer dupla sertaneja formada por mulheres.
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