Quase todo mundo deve conhecer alguém que tenha bloqueado memórias traumáticas do passado. E todo mundo já deve ter bloqueado algumas lembranças para não precisar acessar nunca mais aquele episódio difícil da vida. Mas nem todo mundo conhece ou foi uma pessoa que decidiu abrir a caixinha escondida no escuro e enfrentar, de uma vez por todas, os fantasmas pessoais.
A documentarista Jennifer Fox, entretanto, resolveu fazer isso contando uma parte muito particular de sua trajetória. Aos 13 anos, Fox foi abusada sexualmente pelo seu treinador. Mesmo mais de 30 anos depois, Fox se lembrava do que havia acontecido, mas sua memória resolveu recontar os fatos de maneira diferente. Para ela, aquele abuso tinha sido seu primeiro relacionamento, o início da sua vida sexual e o seu primeiro amor. Após sua mãe encontrar algumas cartas antigas que a própria filha escrevia e entregá-las a Jennifer, a documentarista começa a perceber o que de fato aconteceu naquela época.
Vivida pela excelente Laura Dern (Big Little Lies), o filme não aborda o assunto de maneira previsível. Não é uma história sobre pedofilia, mas sobre memórias oprimidas. Não é uma história sobre vingança, mas sobre entendimento e sobre como somos capazes de romantizar alguns fatos para nos proteger da verdade. A Jennifer do filme não quer se colocar no papel de vítima, embora saiba que fez parte de uma triste estatística. Mesmo tentando justificar que tudo aquilo ocorreu nos anos 1970, quando não se falava sobre isso, Jennifer começa a perceber que suas atitudes durante a vida acabaram sendo influenciadas por aquele trauma.
O Conto mostra, de maneira corajosa, que abusos e abusadores sempre causarão um dano enorme, mas que a forma como essas pessoas agem são diferentes em cada situação.
O Conto mostra, de maneira corajosa, que abusos e abusadores sempre causarão um dano enorme, mas que a forma como essas pessoas agem são diferentes em cada situação. Particularmente no caso de Jennifer, a garota já era negligenciada pela família e seduzida não apenas pelo seu treinador, mas pela namorada desse homem, que compactuava com o crime oferecendo à garota uma família amorosa e amigos compreensivos.
Toda a trajetória é de embrulhar o estômago, mas o longa, escrito e dirigido por Fox, não quer apenas afirmar que abusos sexuais são terríveis, mas contar como tudo aquilo formou sua identidade e como é possível descobrir a sua própria verdade, no seu próprio tempo. Mesmo com dor, Jennifer conseguiu fechar um ciclo.
A escolha de Laura Dern para viver a história de Fox é um dos muitos acertos do longa. Alternando entre a coragem de confrontar seu passado com o medo de reviver tudo o que sentiu, a atriz entrega uma performance marcante. Dern poderia ter optado por uma atuação mais inflamada e sofrida, mas é inteligente em cena para que somente no final, quando já estamos envolvidos, possamos junto com ela enfrentar seu monstro.
Mas talvez o mérito mais importante de O Conto seja constatar que quando uma vítima escolhe contar sua história para os outros, ela também está contando para si mesma. Em uma entrevista, Fox disse que queria mostrar ao público que o sofrimento é algo que do qual precisamos lidar durante a vida. “O que acho muito bom é que, pela primeira vez, as pessoas podem ver que, uau, tudo isso é realmente confuso para todos. Aquilo que a mídia tenta dizer que é simples, como se o mundo fosse pintado de preto e branco, não funciona. Quando uma criança se sente amada, amando e quando ela sente especial, elas precisam lidar com essas emoções e é aí que os abusadores se aproveitam e tiram vantagem.”
É essa a impressão que fica quando terminamos de assistir ao longa. Sem escolhas fáceis e história linear, O Conto mostra a perspectiva de uma mulher que foi obrigada a romantizar seu abuso e agora batalha para entender o quão terrível foi isso. Desesperador, mas necessário.
Em tempo, o filme foi exibido no Festival de Sundance neste ano e comprado pela HBO. O Conto está indicado ao Emmy 2018 na categoria melhor filme feito para a TV, assim como Laura Dern está indicada a melhor atriz em minissérie ou filme feito para TV.
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