Em um rol de filmes engajados do Cinema Novo da segunda década de 1960, muito pouco ou quase nada se ouve falar de O menino e o vento (1960), do argentino Carlos Hugo Christensen, baseado no conto dedicado a João Cabral de Melo Neto, “O iniciado do vento”, de um dos introdutores do surrealismo na literatura brasileira, Aníbal Machado.
Muito dessa recusa ao filme de Christensen se deve ao fato de que, em primeiro lugar, não se tratava de um brasileiro fazendo filmes no Brasil e, logo em seguida, porque o cineasta optou por uma abordagem mais poética de temas como o desejo e homossexualidade em um Brasil em plena ditadura militar.
Existia uma resistência ao abordar uma temática ainda não tão recorrente num país que fervilhava cinema político apenas como debate entre classes. Longe deste patamar, Christensen, que já havia dirigido e produzido algumas dezenas de longa-metragens na Argentina e mais um punhado no Brasil, desde que havia se radicado no país em 1954, não hesitou em retratar a estética do interior mineiro de uma realidade ainda pouco visitada no cinema brasileiro.
Nos primórdios da representação da sexualidade masculina no cinema brasileiro, ‘O menino e o vento’ sopra como um furacão.
A escolha de ângulos obtusos demais ou de cores em contraste muito se relacionam com o encontro de um engenheiro e um garoto de uma pequena cidade rural, os dois de universos distintos, porém com um fascínio em comum. A paixão pelo vento de ambos os personagens aqui se coloca não apenas como fenômeno da natureza, mas como uma epítome da força do desejo: invisível, incontrolável e, certamente, destrutivo.
No conto de Machado, não há uma abordagem explícita, mas o leitor logo compreende que a relação entre o engenheiro José Roberto Nery e o menino Zeca da Curva extrapola o nível de simples camaradagem e reverbera num misto de admiração e fantasia.
Enquanto o engenheiro lutou por uma vida inteira pela busca da lógica e da razão em contraponto à vontade de dar vazão a sentimentos mais subjetivos, Zeca tem fome pela liberdade que o vento evoca, desejando que o leve a lugares por ele ainda desconhecidos e tanto almejados. O encontro de José Roberto com a força de natureza que é o menino causa estranheza a ele e a toda a sociedade da pequena cidade que, aturdida com o desaparecimento do garoto, logo recobra a culpa no companheiro de aventuras de ventania.
Muito relevante também é o fato de que as representações da vila mineira, embora muito possivelmente não intencional, é pitoresco da imagem do país, mais especificamente naquele momento. “Ninguém aqui presta”, afirma veementemente o escrivão na chegada do engenheiro à cidade para responder a acusação de desaparecimento do garoto.
Noutro instante, existe também a figura do primo rico do Rio de Janeiro, abertamente homossexual e que se põe a prestar ajuda a José Roberto: “nós, as minorias, temos de nos ajudar”, é a justificativa do rapaz, que mais tarde o dá as costas após a recusa do engenheiro. Um representante da militância de elite do país ou, indo mais além, da própria figura de Christensen como produtor cinematográfico, que optou por adaptar o conto para cinema naquele momento político do país?
Longe das conjecturas mais aprofundadas, a algo o diretor mineiro não recua: a poética de O menino e o vento é explícita, desde os primeiros minutos, seja pelos diálogos entre os dois personagens principais, seja pela escolha de paisagens tanto bucólicas e existencialistas, que tanto remetem ao cinema de Ingmar Bergman, só que no Brasil.
Não à toa, o crítico e teórico Laurent Desbois afirma, em A odisseia do cinema brasileiro, de 2016: “Apartado de qualquer moda e movimento, pela liberdade do tema, pela condenação da mediocridade difamadora e por sua poesia, [o filme] traz ao cinema brasileiro um novo tom e um novo olhar […] O menino e o vento é um dos filmes mais belos e ousados do cinema brasileiro”.
Num dos primórdios da representatividade da homossexualidade masculina no país, o filme de Christensen vai muito além e sopra exuberância e riqueza poética, da mesma forma que o vento do conto de Aníbal.
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