Antes de estrear os famosos longa-metragens O som ao redor (2012) e Aquarius (2016), o renomado diretor Kleber Mendonça Filho se aventurou em um curta-metragem de gênero híbrido, Recife frio (2009). O reconhecimento do filme foi tanto que já recebeu mais de quarenta títulos em festivais desde sua estreia, um número que só não se equipara com o de Ilha das Flores (1989), de Jorge Furtado. Independente das premiações ou de gênero, que trespassa a ficção científica até o documentário jornalístico, no fundo o grande tom de Recife frio é a comicidade.
Numa capital conhecida pelo calor, pelas praias tropicais e pelo povo acolhedor, uma situação um tanto incomum acontece: uma frente fria absurda chega à capital pernambucana e muda a rotina de todos os moradores. Não há nenhuma motivação específica, tudo é tão inusitado quanto o que aparece ao próprio espectador. Inclusive a própria narração, que certamente mostra esse deslocamento – ouve-se um repórter com um sotaque castelhano falando sobre o ocorrido para um programa documentarístico “daqueles que se vê em TV a cabo”, Mundo en Movimiento.
Ao longo do fio narrativo que é construído numa espécie de jornalismo cômico que busca respostas, encontram-se situações inusitadas. Certamente a mais caricata é a casa de uma família de classe média alta, com uma típica arquitetura provinciana herdada dos tempos de senzala, onde o quarto de empregada, que ficava no recôndito mais escondido e abafado do imóvel, é disputado pelo filho dos donos do apartamento.
Enquanto isso, o quarto de frente para o mar, devido ao frio e à ventilação, fica para a empregada. Uma verdadeira crônica dos tempos modernos que parece ter sido tirada de um conto de Jorge Luis Borges.
Recife frio tem pinceladas de crítica social, típicas das produções de Kleber Mendonça Filho.
Outras situações mais comuns também são intercaladas, como a fala de transeuntes nas calçadas e de um turista tão assustado com a situação que até mesmo preferiu voltar para casa. Todos são retratados de maneira muito atordoada, como se algo muito bizarro tivesse ocorrido.
O único entrevistado-personagem que sucumbe às críticas é um senhor vestido de Papai Noel, que agradece pelo tempo mais ameno devido às roupas que costumava usar. No mais, o frio não faz parte de Recife – mas todos os entrevistados têm de alguma forma de se acomodar a ele: e refugiam-se no shopping center.
Recife frio é uma espécie de ensaio de uma metrópole nordestina em situação de caos. A situação quase que científica que Kleber Mendonça Filho roteiriza, e é produzida por Juliano Dornelles e Emilie Lesclaux, tem uma espécie de tonicidade própria do que Mendonça produziria a seguir, com leves pinceladas de crítica social e do retrato da capital pernambucana. Longe da ficção, no entanto, tudo parece ainda mais caricato, como se os personagens fossem ratos de laboratório em uma grande experiência.
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