Em sua edição de novembro de 1998, a revista Esquire, uma das publicações mais importantes do jornalismo literário norte-americano, teve como reportagem de capa um texto intitulado “Can you say… hero?”, perfil de um personagem icônico na história da televisão e da cultura pop: Fred Rogers, pedagogo apresentador do lendário programa televisivo infantil Mister Rogers’ Neighborhood, produzido entre 1968 e 2001.
Gerações de crianças e pais viam, e até hoje enxergam, no animador, que morreu em 2003, aos 74 anos, o melhor amigo e uma espécie de guia inspiracional para enfrentar, de forma lúdica, os grandes revezes da vida. É, para muitos, como anuncia a matéria, assinada pelo premiado jornalista Tom Junod, uma espécie de herói nacional nos Estados Unidos.
Dirigido pela escritora e cineasta Marielle Heller (do ótimo Pode Me Perdoar), Um Lindo Dia na Vizinhança não é, como muitos podem supor, uma cinebiografia de Mr. Rogers, que é a razão de ser do longa-metragem, mas não seu personagem principal. Vivido por Tom Hanks, indicado ao Oscar de melhor ator coadjuvante neste ano, ele não é o protagonista da história. O roteiro gira, sim, em torno de Junod (Matthew Rhys, da série The Americans) e do processo de produção do perfil escrito por ele.
Dirigido pela escritora e cineasta Marielle Heller, Um Lindo Dia na Vizinhança não é, como muitos podem supor, uma cinebiografia de Mr. Rogers, que é a razão de ser do longa-metragem, mas não seu personagem principal.
Na época com 40 anos, o repórter, especialista em jornalismo investigativo e acostumado a encarar pautas bem mais complexas, não reagiu muito bem quando recebeu a missão de sua editora, no filme interpretada pela veterana e excelente Christine Lahti (de O Peso de um Passado). Ele não era um grande admirador de Rogers e o via como uma figura midiática folclórica. Nunca como um mito.
A proposta da revista era de que Junod, percebido como um profissional combativo e um tanto ácido em seus textos, atenuasse sua imagem junto à opinião pública. Perfilar o apresentador poderia ser a pauta ideal para isso, mas acabou por coincidir com um momento bastante complicado na vida pessoal do jornalista.
Disposto a desmitificar Rogers a todo custo, buscando retratá-lo sob uma luz menos idealizada e mais realista, Junod se depara no processo de apuração com uma pessoa bem mais complexa do que esperava: longe das câmeras, na chamada “vida real”, o pedagogo insistia em dizer e acreditar ser a mesma pessoa que o país via e adorava na televisão. “Sou o mesmo.”
No filme, Junod duvida e seu ceticismo mau-humor são potencializados porque, ao mesmo tempo em que ele está fazendo as entrevistas para a produção do perfil, seu pai (Chris Cooper, de Adaptação), afastado da família há anos e de quem guarda uma mágoa imensa, ressurge em sua vida, o desestabilizando.
Bons roteiros costumam nascer de uma conjugação de fatores, além de uma boa história, entre eles personagens complexos, multifacetados, e de conflitos intrigantes, além de verossímeis, palpáveis. Tudo isso Um Lindo Dia na Vizinhança oferece ao espectador. De um lado temos um jornalista extremamente crítico, em um momento existencial de crise. Do outro, um personagem venerado por todo um país que chega a ser irritante de tão virtuoso, humano. Tom Hanks, em um grande trabalho de composição, consegue atribuir a Rogers uma sombra, que vaza em pequenos gestos e olhares, a despeito de Rogers parecer ser tudo aquilo que representa.
A reportagem de Junod (que você pode ler aqui – em inglês), hoje um clássico do jornalismo literário e base para o roteiro do filme, fala tanto de Mr. Rogers, e da tentativa de revelar sua dimensão humana, para além do mito, quanto do próprio jornalista e de sua tentativa de exorcizar fantasmas do passado, por meio de uma reaproximação com o pai em seus últimos dias. Rhys, um ótimo ator, consegue emprestar a Junod a melancolia que o personagem carrega nos olhos, na linguagem corporal em mais mais um bom filme da safra 2019/20.
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