Quando ainda era um desconhecido estudante de cinema, Steven Spielberg foi convidado para dirigir um telefilme que adaptava o conto Encurralado, do escritor Richard Matheson. Na história, um motorista é perseguido de forma obsessiva em uma rodovia por um caminhoneiro, que nunca é visto pela vítima ou pelo público.
Profundo admirador da obra de Matheson, Stephen King escreveu certa vez que a força dessa trama estava na capacidade de trabalhar o medo do ser humano por veículos grandes e motorizados. “Há algo que me assusta nos carros desde que eu era criança. Acho que é o fato de me sentir tão pequeno perto deles”, disse em uma entrevista para a televisão (veja aqui).
Esse temor foi levado para algumas produções do autor, como Christine, Andando na Bala e Caminhões. Este último, aliás, merece destaque por ter ganhado a única adaptação cinematográfica da obra de King a ser dirigida pelo próprio escritor.
Comboio do Terror (1986) surgiu da parceria com o produtor Dino De Laurentis, que, no início da década de 1980, havia adquirido os direitos de filmagem de vários dos contos da coletânea Sombras da Noite. O livro é o mesmo que originou produções como Olhos de Gato (1983) (leia aqui), Mangler – O Grito de Terror (1995) (leia aqui) e A Criatura do Cemitério (1990) (leia aqui).
Comboio do Terror se beneficia de uma trilha sonora recheada de AC/DC, de um monte de cenas legais de explosões de caminhões e de alguns diálogos interessantes escritos por Stephen King. O resto é lixo.
Originalmente, o mestre do horror seria responsável apenas por assinar a versão inicial do roteiro que levaria às telas o estranho conto sobre um grupo de pessoas abrigadas em um posto de gasolina depois que várias carretas ganham vida e começam a matar. No esboço, King expandiu o conceito de sua história e deu várias indicações de como as cenas deveriam ser rodadas. De Laurentis achou que ali havia potencial para um grande diretor.
O autor recusou duas vezes o convite antes de ocupar o comando da adaptação da ingênua trama – que passa longe de ser a melhor da coletânea. Nas aparições públicas que fez para divulgar Comboio do Terror, o estreante diretor se gabava de ter criado um longa-metragem bobo, mas divertido e bem-humorado. “Tive a chance de explodir várias coisas”, revelou, entre risos, a um repórter da revista Fangoria.
A despretensão levou pouco tempo para se tornar uma decepção que faria com que escritor nunca mais ensejasse o cargo de diretor. Na versão cinematográfica, a rebelião contra os humanos não é apenas dos caminhões, mas de todas os aparatos tecnológicos. Facas elétricas, fones de ouvido e máquinas de refrigerante se tornam letais após a passagem de um cometa que deixa um rastro verde na atmosfera. Nem público nem crítica compraram a ideia, que se tornou um retumbante fracasso comercial.
A primeira cena, hoje bastante simbólica como um discurso de autocrítica, mostra o próprio King em uma breve aparição ao ser xingado pelo caixa eletrônico de um banco. Ao som de “Who Made Who”, do AC/DC, a sequência seguinte mostra uma colagem de momentos em que a revolta das máquinas ganha fôlego. As vítimas estão no trânsito, em um campo de beisebol e no posto de gasolina em que o filme se concentra. Embora seja bastante violenta, essa montagem sofreu severos cortes dos censores da Motion Picture Association of America.
Emilio Estevez, que um ano antes integrava o Clube dos Cinco (1985), vive o protagonista, um chapeiro do tal posto onde a trama é ambientada. Seu chefe é interpretado por Pat Hingle, o Comissário Gordon dos filmes do Batman de Tim Burton. Laura Harrington, de O Advogado do Diabo (1997), fecha a trinca de personagens principais. O vilão é um caminhão de brinquedos cuja frente emoldura o rosto do Duende Verde, inimigo do Homem-Aranha.
Sem se levar a sério, mas sem arriscar demais, Comboio do Terror hoje é mais lembrado pela trilha sonora, recheada de canções de AC/DC, do que pelas cenas de explosão e pelos divertidos diálogos pilantras de King. O próprio autor rejeitou sua criação em todas as ocasiões em que teve oportunidade. Chegou a dizer que dirigiu o filme dopado de narcóticos e que não tinha a menor ideia do que estava fazendo. Uma pena.
Para compor a adaptação, o escritor puxou elementos de Encurralado e A Noite dos Mortos-Vivos (leia mais aqui), de George Romero. O resultado é uma trama interessante e problemática. De certa forma, trata-se de uma produção que antecipa o que veríamos décadas depois em O Nevoeiro (2007) sem o talento de Frank Darabont. Particularmente, acho que, mesmo cheia de defeitos, essa grande bomba merecia um lugar de ouro na história das adaptações esquecidas de Stephen King.