Na primeira cena do clássico absoluto Cidadão Kane (1944), Charles Foster Kane (Orson Welles) pronuncia “Rosebud” e morre sozinho no quarto de sua mansão. Embora nenhum personagem estivesse presente para ouvi-lo, a palavra se torna objeto de investigação de um grupo de jornalistas – que passam o resto do filme tentando descobrir o significado da expressão.
A crítica de cinema Pauline Kael aponta o fato como se fosse um furo no roteiro, algo que o pesquisador Arlindo Machado, no livro O Sujeito na Tela, afirma que é um problema de interpretação. Afinal de contas, havia sim alguém na sala: o espectador e a câmera, responsáveis por criar uma mediação entre a narrativa e o processo de recepção.
Recentemente tenho pensado muito nessa discussão diante dos filmes do cinema de horror que aderem ao estilo found footage. O subgênero, que em sua tradução literal significa “filmagens encontradas”, se tornou presença obrigatória nas produções de dentro e à margem de Hollywood. Baratos, títulos como a série Atividade Paranormal são verdadeiras máquinas de dinheiro, por serem condutores eficientes de sustos e arrepios para o público.
Só este ano, as produções baseadas no uso da câmera em primeira pessoa somam mais de uma dezena. Entre eles estão os previsíveis Área 51 (Area 51, 2015) e A Forca (The Gallows, 2015). O primeiro acompanha um grupo de adultos que decidem invadir a mítica base militar do Arizona para registrar imagens do funcionamento do local. O segundo, como já relatado pelos colunistas Alejandro Mercado e Maura Martins, mostra quatro adolescentes que invadem a escola que estudam para destruir um teatro, supostamente habitado pelo fantasma de um ator que morreu 20 anos antes.
Diferentemente de A Bruxa de Blair (1999), REC (2007) e Cloverfield (2008), o cinema found footage que veio na cola do fenômeno comercial do primeiro Atividade Paranormal (2007) apresenta uma incoerência narrativa semelhante a apontada por Kael em Cidadão Kane. Analisemos as duas obras citadas acima como exemplo. A Forca parte da premissa de que um dos adolescentes é responsável por filmar as apresentações e os ensaios da companhia teatral da escola. Por isso, a câmera está constantemente ligada.
Em Área 51, o anseio da filmagem segue uma linha semelhante a de Holocausto Canibal (1980), em que a necessidade do registro de algo inédito é a urgência de manter as lentes acompanhando o personagem. No fundo, todas essas produções buscam emular o estilo de documentários, mas sem levar em conta que não se tratam de mockumentaries, como This is Spinal Tap (1980), Zelig (1983) ou Diário dos Mortos (2007).
Quem edita o material encontrado em todos os found footages? Precisamos lembram que, diferentemente, dos mockumentaries, em que alguém sempre é responsável pelo material, nesse subgênero as filmagens são encontradas.
Como nos lembra o teórico David Bordwell (leia mais), os found footages partem da premissa de que as gravações do sujeito-câmera foram encontradas por alguém, como o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, em Cloverfield. O problema é que essas produções recentes do subgênero costumam inverter essa lógica de enunciação, com uma confusão de pontos de vistas.
Em A Forca, por exemplo, o sujeito-câmera é constantemente trocado. Aparelhos de filmagens dividem o registro com celulares dos protagonistas, que, em função do suspense, se intercalam na exposição da trama. Quem está editando esse material? O mesmo recurso é usado em Área 51, Projeto Almanaque (2015), Poder sem limites (2012) e uma porção de outros títulos. Em todos eles, o desfecho trágico dos protagonistas é sempre evidenciado por uma câmera abandonada no chão (clichê obrigatório nesse tipo de narrativa).
Nos mockumentaries, a edição é algo intencional, pois as cenas são escolhidas por um editor, como no cinema tradicional. Agora, se as filmagens foram encontradas, como elas podem construir uma narrativa com pontos de vistas diferentes? É evidente que isso é uma contradição dentro do subgênero. Mesmo assim, Arlindo Machado diz poderia argumentar que isso é um problema a ser resolvido entre o espectador e a obra, visto que a edição é feita para o público e não para os personagens do enredo.