“No Brasil não existe preconceito de cor, porque aqui o negro conhece o seu lugar.” É declamando esta frase risivelmente irônica de Millôr Fernandes durante um programa televisivo que Jorge (Zózimo Bulbul), o protagonista de Compasso de Espera, é apresentado ao público.
O filme de 1973 – o único dirigido pelo renomado diretor teatral Antunes Filho – começa contundente, agressivo. Tem como mérito central o pioneirismo ao tratar da questão racial em um país que não conseguia trazer translucidez ao debate.
O personagem Jorge, em si mesmo, é pontuado simultaneamente pela resistência e pela contradição: trata-se de um jovem negro bem sucedido, que leva a vida como um funcionário de uma agência de publicidade e um poeta em ascensão (Compasso de espera é o nome do livro que lança em uma das cenas; o nome se refere a um poema de Ruth Salles). Jorge se veste bem e circula em ambientes mais “naturais” aos brancos. Além disso, é desejado por muitas mulheres, todas brancas – entre elas, mantém um caso com sua chefe, uma senhora separada, bem mais velha do que ele.
Quarenta e três anos depois do lançamento, Compasso da Espera ainda soa atual e causa desconforto com as questões que aborda. De forma sutil, todos os personagens em cena são agressivos, buscam justamente causar incômodo.
Por outro lado, usa os espaços angariados por esse sucesso – como as entrevistas que concede e os debates universitários a que é convidado – para denunciar a desigualdade e o quanto é frágil a visão mantida pelos brancos sobre o que é ser racista (é sintomática a cena em que Jorge pergunta a um jornalista se ele se incomodaria se sua filha casasse com um negro, ao que prontamente responde com a lógica do “não sou racista, mas…” e começa a listar as dificuldades pelas quais ela passaria).
Todos os esforços de Jorge para se adequar à classe média começam a ruir quando ele se interessa pela jovem modelo Cristina (Renée de Vielmond). O relacionamento de ambos é o catalisador a explicitar a fragilidade da estrutura montada por Jorge: sua família, que é pobre, sente que ele se afastou por ter vergonha de ser negro.
Seus amigos o apoiam, mas se ressentem por desconfiar que seu sucesso e suas oportunidades se devem ao fato de que Jorge possui um padrinho (um ricaço para quem sua mãe trabalhou) que financiou seus estudos e, como a narrativa sugere, inclusive o inseriu na agência de publicidade. As mulheres que o cercam o veem claramente como um objeto sexual.
Quarenta e três anos depois do lançamento, Compasso de Espera ainda soa atual e causa desconforto com as questões que aborda. De forma sutil, todos os personagens em cena são agressivos, buscam justamente causar incômodo.
Jorge se vê como um ativista da causa racial, entendendo que sua suposta adaptação na classe média é a mais efetiva das suas ações, mas parece ignorar todas as demais nuances sobre sua vida burguesa. A amante mais velha, Ema (Elida Palmer), financia e legitima seu sucesso profissional, mas desde que não perca sua situação de dominação.
A própria relação com Cristina não é colocada sob a perspectiva do amor romântico. A moça – que configura o típico exemplar da “juventude transviada” que galga espaço com as mudanças nos costumes dos anos 70, deixando de priorizar valores tradicionais como o culto à virgindade – é representada de forma complexa.
Antunes Filho parece propositadamente não esclarecer o que a motiva mais: se o interesse genuíno por Jorge ou a vontade (inconsciente que seja) de se rebelar contra a família, que vê o envolvimento com um negro como uma afronta.
Atualizados os mais de 40 anos, o filme parece polemizar sobretudo pela figura de Jorge, por vezes mostrado como um negro que se recusa a ser negro, ou um negro que jamais se posiciona claramente quanto às questões que enfrenta e que solidifica uma visão pouco edificante da raça negra, como apontou uma moça no debate que sucedeu a sessão do filme no festival Olhar de Cinema.
Talvez fosse justamente esta a intenção do diretor a criar a obra: mais levantar o desconforto do que exatamente acalmar os ânimos. Por esta razão, o filme segue atualíssimo, com tom intrinsecamente político. São muitos os pequenos episódios em que seguiriam gerando, por si só, um longo debate.
Destacaria, por exemplo, a ponta quase imperceptível de Stênio Garcia no papel do homossexual Radar, que aparece em cena com um olho machucado após brigar com o amante, a quem bancou financeiramente. Radar e Jorge configuram juntos um debate complexo sobre o que seria menos desejável naquela sociedade: ser negro ou ser gay.
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