Realizado pela proeminente produtora Vermelho Profundo, de Campina Grande, no interior da Paraíba, O Nó do Diabo tem como diretores quatro nomes: os paraibanos Ian Abé, Jhézus Tribuzi e Ramon Porto Mota, e o mineiro Gabriel Martins. Inicialmente idealizado para ser uma série de cinco episódios, o filme é dividido em cinco partes, do presente ao passado. O noir do cinema de horror está presente em cada uma delas à sua respectiva maneira.
Na primeira parte, tem-se a impressão de que o longa irá tratar sobre um personagem bastante recorrente na classe média brasileira contemporânea: o reacionário. Ambientada em 2018, a casa de engenho abandonada (que será palco para as outros quatro histórias do filme) é protegida por um pistoleiro atormentado pelas vozes de locutores de rádio que ecoam que o Brasil precisa de uma “higienização” e que a democracia é a grande ruína do país.
Ao mesmo tempo, o espectador é apresentado pela constante presença do espírito do antigo patriarca da família Vieira (interpretado por Fernando Teixeira), que convoca insistentemente o personagem a continuar na caça para proteger a honra da família e da tradição. Ao final da fábula, o capanga tem um trágico final, atacando as sombras de si mesmo – uma bela metáfora sobre o brasileiro médio que cultiva ideologias retrógradas.
Abruptamente, a sequência é finalizada e somos apresentados à segunda parte da história: estamos agora em 1987, e um casal fugido da precária condição de vida da capital pernambucana é levado a perguntar por emprego como caseiros da antiga casa de engenho. Propondo uma situação bastante verossímil, especialmente para a segunda metade dos anos 80, é possível perceber que a situação de opressão desses personagens é, de certa forma, bastante semelhante ao da escravidão um século antes.
‘O Nó do Diabo’ tem o mérito de tratar sobre uma relevante temática social através da potência do cinema de horror.
Inicialmente, o marido é quem sente suas feridas exponencialmente se alastrando pelo seu corpo, enquanto a mulher, ao limpar o mobiliário da casa, percebe que houve alguma espécie de incêndio em um canto escondido por uma cômoda e que um homem muito similar ao seu marido é visto em um dos antigos porta-retratos da casa.
Dessa forma, o horror e o suspense aumentam de tal forma que ao final da história o marido é torturado por antigos objetos usados para castigar escravos, enquanto a mulher se torna amarga com olhos profundamente vermelhos.
O terceiro episódio se passa em 1921. O velho Vieira tem duas filhas mais velhas e um caçula, o herdeiro da família. Apesar da abolição da escravatura pela Lei Áurea ter sido promulgada algumas décadas antes, o senhor da casa de engenho ainda insiste em torturar seus vassalos, incluindo duas adolescentes negras. Ao receber a visita de um velho amigo, Vieira apresenta as irmãs, que logo de olho conquistam o interesse do colega, e lhe é proposto por Vieira a se deitar com uma delas, a menos dócil.
Revoltada pela sua condição, a garota atinge o homem com uma tesoura e foge entre as plantações de cana de açúcar. A irmã mais acanhada, no entanto, tem uma espécie de “bênção ancestral” em que é capaz de fazer fogo através do poder do pensamento. O final do episódio, um dos melhores do longa-metragem, são os olhos de vingança da adolescente ao, finalmente, poder se vingar do velho Vieira.
Ambientado no ano de 1871, o quarto episódio é, particularmente, um dos mais fracos dos cinco, porém cumpre o seu papel mais pelo impacto simbólico do que necessariamente pelo terror em si. Um rapaz negro consegue fugir da fazenda de Vieira e é perseguido por ele e por dois capangas.
Ao longo da sua jornada no terreno árido das imediações, no entanto, ele se depara com situações que remetem às suas origens: uma espécie de xamã e um velho amuleto de seus ancestrais que, quando exibidos no último episódio, talvez façam mais sentido ao espectador. No entanto, como em todos os episódios até então, ele é acometido pela desesperança de que nunca irá encontrar o quilombo e de que deve se contentar com a morte.
O quinto capítulo de O Nó do Diabo é ambientado em 1821 e fecha com chave de ouro o longa-metragem. Nele, temos cinco personagens quilombolas que foram encontrados pelos capatazes furiosos. Uma delas é uma velha senhora que deseja passar uma espécie de ritual para a mais nova delas – e aqui entendemos o sentido do amuleto.
Ao se esconder no lugar que um dia no futuro seria a velha casa do engenho, os cinco personagens sofrem com a represália e acabam morrendo um a um. Quando finalmente os capatazes atacam a senhora e a jovem caçula, no entanto, algo acontece uma força se renova (uma fagulha de esperança para o futuro, quiçá) para todas as fábulas da ficção.
Com um recurso de apenas R$ 650 mil, o longa-metragem roteirizado pelos integrantes da Vermelho Profundo pode não possuir os melhores efeitos, mas tem o mérito de retratar as mazelas de um Brasil escravocrata e elitizado que ecoam até os dias de hoje. Ao utilizar um cinema de gênero, O Nó do Diabo marca presença pela inovação do cinema brasileiro ao se propor de tratar de temáticas sociais por meio da potência do cinema de horror. A reflexão que ficamos ao final do filme é a de que a elite brasileira continua a enterrar seus pobres no quintal da sua própria casa como em tempos remotos.
VOCÊ CHEGOU ATÉ AQUI, QUE TAL CONSIDERAR SER NOSSO APOIADOR?
Jornalismo de qualidade tem preço, mas não pode ter limitações. Diferente de outros veículos, nosso conteúdo está disponível para leitura gratuita e sem restrições. Fazemos isso porque acreditamos que a informação deva ser livre.
Para continuar a existir, Escotilha precisa do seu incentivo através de nossa campanha de financiamento via assinatura recorrente. Você pode contribuir a partir de R$ 8,00 mensais. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.
Se preferir, faça uma contribuição pontual através de nosso PIX: [email protected] Você pode fazer uma contribuição de qualquer valor – uma forma rápida e simples de demonstrar seu apoio ao nosso trabalho. Impulsione o trabalho de quem impulsiona a cultura. Muito obrigado.