Ninguém gosta de ver seus defeitos serem apontados bem no meio da cara, especialmente no horário nobre. Na indústria do entretenimento, falando especialmente sobre televisão, o escapismo ainda é o principal fator para sentarmos no sofá e acompanharmos histórias que nos deixam num nível seguro de distância para que não precisemos nos importar. Quando vemos algo que serve como espelho, a experiência pode ser incômoda e mudar de canal é o remédio mais indicado. Talvez seja por isso que American Crime tenha sido precocemente cancelada em sua terceira temporada por baixa audiência.
Exibida pela rede ABC, canal bastante conservador e familiar, a antologia não agradou muito o público dos Estados Unidos, talvez por mostrar um lado do país que ninguém quer ver. Ao mesmo tempo, é surpreendente que uma produção como esta tenha durado três anos. Com uma linguagem diferente de tudo o que está no ar atualmente, American Crime aposta no sutil. A câmera é quase sempre estática, abusa de planos fechados e suas cenas são lentas, silenciosas, secas e difíceis de assistir. É quase como se todos nós estivéssemos testemunhando algo criminoso e conscientemente escolhendo fechar os olhos.
Diferentemente das duas primeiras temporadas, o terceiro ano de American Crime foca em várias histórias ao mesmo tempo, mas que convergem em direção a um problema, com o objetivo de falar sobre desigualdade social, tráfico humano, escravidão moderna e direitos civis.
Um imigrante mexicano chamado Luis Salazar (Benito Martinez) atravessa a fronteira do México/EUA em busca de seu filho, também imigrante, que desapareceu e foi visto pela última vez trabalhando em uma fazenda de tomates na Carolina da Norte. A fazenda é administrada por Laurie Ann (Cherry Jones) e vive uma severa crise financeira, o que leva a empresária a reduzir custos. Logo entendemos que a fazenda “contrata” imigrantes ilegais por um salário ofensivo, que trabalham sob condições degradantes.
Após uma tragédia na fazenda, a nora de Laurie Ann, Jeanette (Felicity Huffman), tenta descobrir o que aconteceu e se vê no meio de uma família extremamente corrupta. Para além da fazenda, acompanhamos Kimara Walters (Regina King), uma assistente social que tenta ajudar uma garota de 17 anos, Shae (Ana Mulvoy-Ten), a sair da prostituição; Nicolas Coates (Timothy Hutton), dono de uma empresa de móveis, que também passa por problemas financeiros; e Claire Coates (Lili Taylor), esposa de Nicolas, que contrata Gabrielle (Mickaëlle X. Bizet), uma babá imigrante do Haiti para cuidar de seu filho.
O texto jamais julga seus personagens, mas deixa que suas ações falem ao público.
Criada por John Ridley (100 Anos de Escravidão), American Crime continua colocando uma lupa nas pequenas ações de microssociedades. Não há apenas um argumento a ser seguido, mas pequenos grandes crimes cometidos todos os dias, que corrompem qualquer tentativa de viver num mundo melhor. Sim, a série é bastante depressiva e pessimista, mas nunca irreal. O texto jamais julga seus personagens, mas deixa que suas ações falem ao público. Por isso, a experiência incômoda de assistir a American Crime depende muito da visão de mundo de cada público e de quanto aquela mensagem importa para o espectador.
O roteiro nunca coloca frases expositivas demais na boca de seus personagens, mas, às vezes, manda um recado claro, como quando em determinado episódio alguém questiona sobre o trabalho escravo nas lavouras, dizendo: “A comida em sua mesa vem com um preço caro, que você pode não ver, mas alguém precisou pagar. Você pode optar por ignorar o que acontece, mas o que você não pode é ser ignorante.”
É assim, sutilmente, que John Ridley e os roteiristas vão inserindo situações extremamente desconfortáveis. O filho branco do casal rico começa a bater na babá imigrante e negra que não fala inglês; a patroa começa a limitar o que a empregada pode ou não comer dentro de casa; uma empresa lucra com a escravidão de imigrantes e despeja corpos em um rio com a certeza de que a polícia não investigará; adolescentes se prostituem na rua enquanto uma assistente social tenta resgatá-los, sem nenhum auxilio governamental.
Há, também, algumas discussões pontuais, como a escolha do aborto feita por meninas pobres e sem auxílio da família, a legislação injusta de uma cidade conservadora e o descaso dos norte-americanos com outras realidades. Acima de tudo, a série mostra que o maior dos crimes é a injustiça e que você presenciar uma injustiça e optar por não fazer nada o torna também um criminoso.
A última temporada nos presenteia com atuações impressionantes, mas muito mais contidas do que nos dois primeiros anos. Regina King, ganhadora de dois Emmys consecutivos por seu papel na série, tem mais tempo na tela, bem como Felicity Huffman, que agora interpreta uma personagem muito mais simpática, ainda que sua vida vazia também gere interessantes discussões sobre suas reais intenções. Mas o grande personagem de American Crime continua sendo a câmera, a direção primorosa dos episódios e a busca pela conexão humana.
Com enquadramentos que focam nas reações do personagem enquanto algo acontece fora do quadro, a série encontra verdade no banal, em pequenos gestos do cotidiano que podem parecer normais, mas que escondem angústias, aflições ou um pedido de ajuda, o que força os atores a entregarem performances que certamente serão lembradas em premiações. A narrativa é orgânica, tão natural, que é bem provável já termos cruzados ou convivermos com pessoas muito parecidas com aquelas.
Em determinada cena, a adolescente Shae, que se prostitui nas ruas, procura palavras aleatórias em uma espécie de dicionário de aflições, com expressões inventadas que refletem o que a pessoa está sentindo. Ela se depara com a palavra énouement: o prazer e a tristeza de chegar no futuro, mas sem dizer ao seu eu do passado todas as coisas que você descobriu.
American Crime termina sua trajetória sendo uma das séries mais impactantes e relevantes dos últimos anos, especialmente por ter sido transmitida pela TV aberta. E é realmente uma pena não ter tido a atenção merecida, mas é mesmo muito difícil enfrentar os problemas da vida real expostos de maneira tão crua.