Existem séries que são boas por seu conteúdo e existem séries que, além do conteúdo, são boas (ou excelentes) pelo que representam. Quando, em 2014, a ABC, um dos maiores canais abertos de televisão norte-americano, decidiu apostar em um show em horário nobre criado, escrito e interpretado majoritariamente por roteiristas e atores negros, o mundo do entretenimento televisivo ficou impressionado. Ainda que os Estados Unidos estejam à frente de vários países quando o assunto é o debate e a participação de mulheres e negras e negros no universo das artes, estar “à frente” nem sempre significa muita coisa – e as críticas recebidas pelo Oscar no ano passado deixam isto bem claro. E é dentro deste contexto que está Black-ish.
Movimento semelhante tivemos no Brasil, quando a Globo inseriu em sua programação Mister Brau. Ela e Black-ish guardam algumas semelhanças. Mas vamos nos ater à série norte-americana. Por aqui, muita gente não entendeu quando ela começou a receber indicações nos principais prêmios, especialmente pelo fato de que em sua primeira temporada (e já estão na terceira) ela arrebatou “apenas” (quase todos) os prêmios da NAACP Image Award, premiação oferecida pela associação norte-americana que cuida do desenvolvimento de pessoas de cor (em tradução literal) dentro de várias áreas das artes, como cinema, televisão, música e literatura.
A consagração, se é que a série precisava (e eu sou da opinião que não), veio com a vitória de Tracee Ellis Ross como melhor atriz em série de comédia ou musical no Globo de Ouro deste ano, isso sem contar as indicações ao Emmy, Critic’s Choice, SAG e Kids Choice. Mas, afinal, o que conferiu esse sucesso de crítica e público? Não se trata apenas da visibilidade à população negra, mas principalmente da representatividade.
Boa parte dos episódios da série criada por Kenya Barris, criador entre outras coisas do America’s Next Top Model, dialogam diretamente com a população negra norte-americana, mesmo que o casal interpretado por Dre (Anthony Anderson) e Bow (Tracee Ellis Ross) e seus quatro filhos sejam de classe média alta. Aliás, por que esse seria um problema, não é mesmo? Neste sentido, aqui se esconde uma das primeiras grandes forças da série, que projeta uma realidade possível para a população negra que não a ligada à pobreza ou criminalidade.
Não se trata, portanto, de uma série panfletária, mas de um diálogo com um público específico e carente de representação.
O personagem de Anthony Anderson é um publicitário bem-sucedido, Diretor de Criação em uma grande agência; a de Tracee é uma médica em um hospital de renome; seus filhos estudam em bons colégios, são populares e inteligentes. A maioria dos personagens brancos que aparecem são propositadamente caricatos, jogando justamente com a imagem dos negros criadas por muitos produtos culturais ao longo do tempo. E caso isso não fosse suficiente, o roteiro dos episódios aborda questões caras à comunidade negra sempre com bom humor. Não se trata, portanto, de uma série panfletária, mas de um diálogo com um público específico e carente de representação.
É claro que esta opção acaba afetando os índices de audiência de Black-ish (termo que significa algo como “mais ou menos negro”), que caíram de pouco mais de 11 milhões de espectadores na primeira temporada para cerca de 6 milhões na temporada atual. Porém, Barris e seu time de roteiristas não parecem muito preocupados com isso, tampouco a ABC, que aposta fortemente na série, e a Netflix, que adquiriu os direitos para retransmissão no serviço de streaming e já possui a primeira temporada completa para exibição. E se tudo isso não é motivo suficiente para você mergulhar nesta série, saiba que Laurence Fishburne está incrível em seu papel como pai de Dre, mostrando uma veia cômica até então desconhecida do grande público.