A série australiana Please Like Me foi ao ar de 2013 a 2016, chegando ao Brasil pelo sistema Netflix. Construída numa linha tênue entre o drama e a comédia, a série tem como pontapé inicial a saída de Josh do armário e as situações decorrentes disso.
Protagonizada e dirigida por Josh Thomas, que deu seu próprio nome ao seu personagem principal, Please Like Me tem aquele ar de série de problemas da classe média no mundo moderno, algo meio Girls, meio Master of None. Para além de seu olhar sobre relacionamentos, carreira e amizade, a série constrói personagens complexas e interessantes que apresentam um panorama importante dos problemas mentais em nossa sociedade, e é sob esse viés que falarei abaixo. Portanto, quem ainda não assistiu a série e que fugir dos spoilers, pode ler o ótimo texto do Rodrigo de Lorenzi sobre a série aqui no site.
Na primeira temporada de Please Like Me, já somos apresentados à depressão de Rose, mãe de Josh. Diferentemente da maioria das representações da depressão na TV e no cinema, a personagem interpretada por Debra Lawrence é construída sob um longo arco dramático, tanto que sua doença passa por várias fases nessas quatro temporadas: suas tentativas de suicídio, sua passagem por uma clínica psiquiátrica e suas constantes oscilações. Um dia, ela abandona os remédios; no outro, pinta os cabelos e compra um cachorro; depois, ela fica semanas e semanas sem lavar a louça, construindo nesses pequenos detalhes as mudanças cotidianas que uma doença mental causa nas pessoas, inclusive naquelas que nos cercam.
São nessas pequenas compreensões das dores que se passam em uma cabeça doente que Please Like Me consegue fazer um retrato certeiro.
Numa das cenas da primeira temporada, Rose enche-se de comprimidos e é encontrada caída no chão da cozinha por Josh. Ainda lúcida, ela só pede que Josh não a leve para o hospital. Uma cena forte e verdadeira, que bateu com força em mim. Há quase dois anos faço tratamento para o transtorno de ansiedade. Ano passado, em meio a uma crise, tomei cerca de 8 ou 9 comprimidos. O amigo com que eu dividia apartamento ficou preocupado e minha única reação era pedir “não me leve ao hospital”. Pode parecer um pedido esdrúxulo, mas para uma pessoa com problemas mentais esse é um pedido feito pelo medo.
Aquele dia eu fui ao hospital e foi uma experiência desalentadora: eu fui tratado sob olhares de julgamento, com enfermeiros falando em tom sarcástico sobre minha atitude ou outros falando em Deus e no dom da vida. É sobre esse estigma que a série vira e mexe volta: como portar-se perante a sociedade com uma doença que leva aos arquétipos preconceituosos da loucura.
Na série, Rose acaba indo ao médico depois dessa situação, e nos corredores do consultório ela chora, com medo de ser vista ali e ser considerada louca. Mais uma vez parece exagerado, mas são nessas pequenas compreensões das dores que se passam em uma cabeça doente que Please Like Me consegue fazer um retrato certeiro, soando reconfortante para quem vivencia situações como aquelas e ajudando a clarear a compreensão de quem não sabe como lidar perante essas situações.
Em sua passagem pela clínica psiquiátrica, somos apresentados a Hannah, Arnold e Ginger, os novos amigos dela. Ansiosos, depressivos e auto-destrutivos, eles ajudam a expandir o leque da série, trazendo as angústias e dúvidas dessas personas ainda mais para o foco da trama. Arnold se envolve romanticamente com Josh e, mais uma vez, o protagonista precisa aprender a lidar com essas tramas com as quais não está habituado, como, por exemplo, as inseguranças e as crises de ansiedade de Arnold.
Em uma sequência na praia, Arnold tem uma crise de ansiedade e eu, como telespectador, só tinha vontade de entrar na tela e tentar ajudar de alguma forma, pois aquilo que ele vivenciava ali é o que há tempos me aflige: o medo, a falta de ar, o não domínio do nosso próprio corpo. Eu consegui me enxergar naquela cena e percebo que esse tipo de perspectiva é fundamental para que outras pessoas possam entender e lidar com esses problemas que eu e outras milhões de pessoas enfrentamos.
Hannah, por sua vez, aparece sempre com dificuldades de socialização, não sabemos seu diagnóstico preciso, mas a vemos sempre acuada, não-pertencente, até que em determinado momento descobrimos que ela se automutila como forma de aguentar as suas obrigações sociais. No decorrer da trama, temos pinceladas que deixam claro que ela tinha uma carreira estável e teve relacionamentos sérios com outras mulheres anteriormente, mas na série acabamos tendo contato com a ribanceira pela qual a doença a levou.
Ginger é aquela que sempre se apresenta mais irônica, mais debochada perante tudo, mas é ela que nos surpreende ao cometer suicídio na clínica, deixando todos estupefatos. Rose, sua amiga, se sente abandonada e acaba entrando naquele jogo de “o que eu poderia ter feito antes”, que leva a mais culpa e dor, quando sabemos que uma pessoa suicida não quer deixar apenas um rastro de vingança (como 13 Reasons Why pode aparentar), mas, sim, ela quer simplesmente desaparecer e cessar aquela dor.
Dessa situação, surge o episódio mais bonito da série: Josh e sua mãe vão a um acampamento em meio a natureza, onde discutem a vida, seus medos e as tentativas de suicídio de Rose. Depois disso, em meio às oscilações da doença, como que na vida real, somos pegos de surpresa pelo suicídio da própria Rose. A dor de Josh é latente nos dois últimos episódios da série e ficamos com um gosto amargo na boca, que dói ainda mais quando Hannah chora ao telefone, sentindo-se culpada por tudo, com medo, sozinha, pensando que terá que voltar para a clínica psiquiátrica.
A perspectiva pela qual a série aborda o suicídio é séria e delicada, dando conta da complexidade do tema, possibilitando representações e reflexões extremamente úteis. Eu assisti as quatro temporadas de Please Like Me este ano e, pode parecer bobagem para muitos, mas ela foi fundamental para que eu me visse e me transportasse para aqueles cenários. Este ano, já morando novamente com minha mãe, certa noite decidi, tomei 17 comprimidos e deitei, na expectativa de acabar com tudo. Vomitei, suei frio, tive alucinações e passei quase 24 horas vidrado. Não morri, mas ainda carrego as mesmas dores e, por mais banal que possa parecer, foi uma série de TV que me ajudou a olhar por outros ângulos e que me fez sentir que não estou sozinho, que sigo na batalha, mas que não estamos sozinhos.
Please Like Me tem variados pontos positivos – seu humor inteligente, seu olhar sobre a vida moderna, sua trilha sonora ou mesmo sua construção narrativa alinhavada por pratos gastronômicos. Por isso, vale como entretenimento para diferentes públicos. Esse texto serve, para mim, como um enfrentamento de alguns demônios através da análise da série, pois nessa fase conturbada, Please Like Me serviu quase como que um reencontro com amigos. Para você leitor, talvez não tenha a mesma função, mas certamente lhe ajudará a enxergar o outro de distintas maneiras e ainda lhe arrancará lágrimas e risadas – assim o espero.