A artista Judy Garland foi uma cantora estupenda, uma das grandes vozes do século 20. Quando no papel certo, também sabia ser uma atriz potente, que iluminava a tela com algo difícil de se descrever, porém inestimável. Tinha muito a ver com ser bonita, mas não demais, de uma beleza corriqueira, trivial, e também com um carisma único. Quando adolescente, o público que lotava os cinemas nas décadas de 1930 e 40, nela via a vizinha, a melhor amiga, alguém comum. Ao cantar, porém, ela se transformava numa espécie de tesouro americano, imortalizado no clássico O Mágico de Oz (1939). Muito cedo, Hollywood se deu conta disso e fez dela uma estrela e, da mesma forma, a mastigou em suas engrenagens, roubando-lhe não apenas a juventude, mas também muito de sua saúde mental, a obrigando a tomar remédios para emagrecer, dormir, antidepressivos e ansiolíticos.
A partir dessa premissa sombria, é construído o irregular roteiro de Judy: Muito Além do Arco-Iris, drama musical do cineasta britânico Rupert Goold (de A História Verdadeira), por sua vez baseado na peça End of the Rainbow, de Peter Quilter. A ação se passa no fim dos anos 60, quando Judy, falida e dependente química, se vê sem uma casa onde morar com os dois filhos menores – a mais velha, a também atriz e cantora Liza Minnelli, já era adulta e iniciava sua carreira. Na tentativa de se recapitalizar, Judy decide aceitar o convite para uma temporada na casa noturna The Talk of the Town, em Londres, onde era adorada. Lá, morreria meses depois.
Para viver o papel de Judy Garland, foi escolhida Renée Zellweger, que embora não soasse como a escolha mais óbvia, provou ser o grande trunfo do filme: ela entregou-se de corpo e alma ao papel, que deve lhe dar, no próximo domingo, dia 9 de fevereiro, o segundo Oscar de sua carreira – o primeiro foi em 2003, de atriz coadjuvante, pelo drama histórico Cold Mountain, de Anthony Minghella.
Esse encontro mágico entre Judy e Renée faz bastante sentido, olhando retrospectivamente. Como sua personagem, a estrela loira de Chicago e O Diário de Bridget Jones também chamou atenção, em 1996, em um dos seus primeiros filmes, Jerry Maguire – A Grande Virada, estrelado por Tom Cruise, por justamente ter esse charme girl next door, classe trabalhadora, e uma certa vulnerabilidade emocional que sempre pontuou a carreira de Garland.
O fato de, na última década, Renée ter caído em no ostracismo e até ter se tornado motivo de piada por conta de procedimentos cosméticos supostamente mal sucedidos apenas, de certa forma, a aproximaram um pouco mais de Judy pelo viés do vexame, do fracasso, e ela soube agarrar a oportunidade com unhas e dentes. Ao ponto de ter encontrado na própria voz como cantora um tom próximo ao da sua personagem.
A ação se passa no fim dos anos 60, quando Judy, falida e dependente química, se vê sem uma casa onde morar com os dois filhos menores
Judy: Muito Além do Arco-Iris, contudo, não é um bom filme. Ele se sustenta fundamentalmente na atuação de Renée e, talvez, o maior erro do roteiro é reduzir a personagem a suas mazelas e tragédias, esquecendo-se da genial artista que ela foi, do quanto ela engrandeceu as artes de cantar e atuar, retratando-a apenas como um farrapo humano. Ninguém se transforma em um ícone de suas dimensões apenas por ter sofrido demais.
Em flashbacks da adolescência da estrela (vivida nessa fase por Darci Shaw), quando rodava O Mágico de Oz sob a mão de ferro do implacável e monstruoso produtor Louis B. Mayer (Richard Cordery), o longa tenta estabelecer um possível vínculo de causa e efeito com o que a artista está a viver aos 47 anos. Faz sentido, mas é simplista, óbvio demais. É muito pouco para explicar a vida de alguém tão complexo. Soa como psicologia de botequim.
O filme fica melhor em seus números musicais, defendidos com bravura por Renée, e em momentos aparentemente desimportantes, como quando Judy entra no armário com os filhos pequenos para falar do medo de ficar longe deles ou sai para jantar com um casal de fãs gays após a apresentação e descobre que um deles não pode ver sua turnê anterior pela Inglaterra porque estava preso, simplesmente por ser homossexual. Percebe ali que, a despeito de sua baixíssima autoestima, de seus traumas, ela é muito importante para tantos que conseguiu conseguiu levar com sua arte para além do arco-íris, transcendendo a própria dor.
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