A menina, ainda adolescente, orgulhava-se de ter lido todos os livros que os pais tinham em casa; depois devorou todo o acervo da biblioteca da escola; uns anos depois foi recordista de empréstimos de livros na biblioteca pública da cidade onde morava. Quando adulta, gastou dinheiro que não tinha comprando as edições bonitas; passava em dois sebos no caminho de volta do trabalho para casa; vivia de ler, conversar e escrever.
Aí, veio o bebê. E com ele, todos os clichês. Um filho é a melhor coisa do mundo. É um amor que transborda. Há noites mal dormidas. Risada de bebê é hipnotizante. Tem fralda para trocar. Tem uma vontade imensa de que sejam felizes, saudáveis, satisfeitos. “Temos gula pelos filhos, uma gula do tamanho dos absurdos, sempre começada, sempre incontrolável. E queremos tudo dos filhos como se nunca nos bastassem, nunca nos cansassem porque, ainda que nos cansemos, estamos incondicionalmente dispostos a continuar”, resumiu Valter Hugo Mãe em O Filho de Mil Homens (Cosac Naify, 2012).
Embora a vida com filho seja repleta de recomeços, e que os pais, bravamente, recomecem a cada choro ou necessidade, os recomeços valem também para as outras atividades cotidianas. Você está no banho e o bebê chora: recomeço; está vendo o noticiário e a criatura exige atenção: recomeço; decide comer ou cozinhar e de repente: recomeço. Pois, como ler um livro assim, se por incontáveis vezes varei a madrugada pelo fim do enredo? Sem poder lidar com a imprevisibilidade, nem começaria a ler.
Antes
Ainda sem saber o que me aguardava, na gravidez, comprei Graça Infinita (David Foster Wallace, Cia das Letras, 2014). Ouvia dizer que bebê novinho dorme por longos períodos, mama por bastante tempo também. Eu ficaria um tempo em casa, não precisaria carregar o livro, então porque não ler o afamado calhamaço? Ingênua mãe de primeira viagem…
Durante
O bebê nasce e de repente você se dá conta que não sabe nada sobre bebês. Mas que existe uma vontade inexplicável de fazer todo o possível. E que ver tudo que acontece com aquela miniatura de gente é a sensação mais fantástica possível. E que até o choro é lindo. E que tudo bem trocar a fralda de cocô. Deixei de me importar com livros ou o que mais que fosse. Graça Infinita enfeitou o quarto da filha por meses, mas confesso que não passei da quinta página. Os amigos lançaram livros que comprei, mas confesso também que só dei uma olhada por cima nas obras. Desculpa, pessoal, mas sofri o devastador efeito do amor de mãe e precisei de tempo para voltar a ler literatura.
Sob supervisão, decidimos deixar que a criatura mexa nos nossos livros, afinal, não dá pra dizer “não” para o livro agora e querer que os filhos leiam depois…
Até porque entra na jogada um novo tipo de conhecimento que precisa ser adquirido: você quer saber sobre cólicas, sonecas, amamentação, posições para arrotar, roupas mais adequadas, o que significa uma manchinha vermelha no rosto do bebê, vacinas, reações às vacinas, introdução alimentar… Um novo mundo de informações se descortina e o Wallace e suas tiradas ácidas que esperem conjuntura mais favorável.
E quando eu digo um mundo novo, não é eufemismo. É um mundo novo mesmo porque as publicações voltadas para a infância crescem em progressão geométrica. Li três livros voltados para os cuidados com bebês e incontáveis textos em blogs, artigos científicos, dissertações de mestrado na área de pediatria… Li o equivalente a uma enciclopédia e agora poderia ocupar cerca de três resmas para escrever o que aprendi…
Depois
Quando o bebê começou a se interessar pelas coisas da casa, um móvel baixo com livros ficou no lugar de sempre. Sob supervisão, decidimos deixar que a criatura mexa nos nossos livros, afinal, não dá pra dizer “não” para o livro agora e querer que os filhos leiam depois…
Voltei a ler um livro inteiro quando o bebê estava com quatro meses. Ganhei Vozes Anoitecidas (Mia Couto, Cia das Letras, 2013), um livro de contos. Por fim, descobri como readequar meu hábito de ler com os cuidados com o filhote: lendo livros que me permitem paradas estratégicas, como livros de contos, crônicas ou poesia. Descobri também que ler em voz alta – o que quer que seja, até bula de remédio – é garantia de sucesso com a criança, pelo menos por aqui.
Vem o bebê e os clichês: é a melhor coisa do mundo e todas as prioridades mudam. Aprende-se sobre recomeçar e inclua aí adaptar os velhos hábitos à nova e maravilhosa realidade. É sempre bom mudar.
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