Em 1994, um repórter perguntou a Renato Russo, vocalista da Legião Urbana, quem eram os seus heróis. Sem pestanejar, respondeu: Jesus Cristo e Bob Dylan. E para Renato o trunfo do norte-americano não era a voz anasalada ou uma habilidade ímpar de tocar gaita. Dylan se destacava por ser um poeta. Passados 22 anos dessa conversa, Bob Dylan receberia o Nobel de Literatura “por criar novas expressões poéticas dentro da grande tradição da música americana”.
Dizer que Dylan não é merecedor é, no mínimo, ignorância. Dizer que era ele quem mais merecia levar o prêmio é ingenuidade. Philip Roth, escritor norte-americano, Adonis, poeta sírio, e Ngũgĩ wa Thiong’o, autor queniano, talvez fossem nomes que estivessem na fila também. Ainda que o silêncio possa privá-lo de receber os quase R$ 3 milhões oferecidos pela Academia Sueca, Dylan invariavelmente foi anunciado como Nobel. E aí está a polêmica: letras de músicas são poesia? Leonard Cohen, que aos 82 anos acabou de lançar o disco You Want it Darker, está neste mundo para dizer que sim.
Quando a jornalista bielorrussa Svetlana Alexijevich, responsável por obras singulares do new journalism contemporâneo, foi premiada no ano passado, não faltaram gritos de que reportagens – mesmo a tradição do jornalismo literário – não são literatura. Em resumo, as últimas duas escolhas demonstram a abertura – e a diversidade – da Academia Sueca em, justamente, abandonar a academia, libertar-se dos grilhões que enquadram as letras.
A literatura vai muito além. Nem tudo o que é publicado no formato de literatura, o é. A ruptura, a quebra de paradigmas está aqui para desfazer a tradição. Cohen, quando inquirido sobre o caso, foi elegante e certeiro: “é como dar ao Everest uma medalha por ser a montanha mais alta do mundo”. Em outras palavras, para o poeta e cantor canadense, a escolha foi óbvia. A opinião não é compartilhada à profusão.
A literatura vai muito além. Nem tudo o que é publicado no formado de literatura, o é. A ruptura, a quebra de paradigmas está aqui para desfazer a tradição.
Mario Vargas Llosa, que levou o prêmio em 2010, está entre os contrários. Para o jornal El Confidencial, o escritor peruano afirmou que “nosso tempo está marcado pelo espetáculo”. A questão, ou seria polêmica pura e simples?, tem a ver também com orgulho. Como um músico/letrista/compositor pode sair na frente de tantos escritores talentosos? Isso não dá para dizer, mas negar que a música de Robert Allen Zimmeman – que escolheu seu stage name inspirado pelo poeta Dylan Thomas – carrega consigo a poesia beat e a tradição da prosa norte-americana não é das mais sábias decisões.
Entre prós e contras, a escolha do cantor tem uma grande vantagem para todos: a publicação de suas obras literárias – sim, aos desavisados, ele tem livros em seu nome – serão (re)lançadas no Brasil. Tarântula, coleção de poemas em prosa lançado em 1976 e que fazia parte do catálogo da finada Brasiliense, e Crônicas Vol. 1, já fora de catálogo (nunca houve a sua continuação), saem pela Planeta. A Companhia das Letras anunciou que lançará The Lyrics 1961-2012 em 2017. Enfim, que reine a boa música e a literatura de qualidade.