Na última segunda-feira, 10, o Brasil perdeu uma de suas melhores escritoras. Elvira Vigna, 69 anos, faleceu em decorrência de um carcinoma que havia sido diagnosticado em 2012. De lá para cá, ela se manteve produtiva e continuou publicando vários livros, inclusive considerados por muitos como seus melhores trabalhos.
A autora de Como se estivéssemos em palimpsesto de putas e Por Escrito, entre outros, era a meu ver o nome mais importante em atividade na literatura contemporânea brasileira. Dona de um estilo muito próprio, de difícil classificação e repleto de experimentações, Elvira teve uma trajetória muito consistente e deixou como legado uma obra que certamente influenciará diversas gerações de autores nacionais, pois se tornou um ponto de referência obrigatório para quem se interessa por boa literatura.
Em 2012, mesmo ano de seu diagnóstico, quando eu ainda publicava resenhas em meu blog pessoal, escrevi sobre o livro Nada a Dizer, uma obra que li meio por acaso e que acabou me impactando demais. Pois bem, o texto estava lá quietinho sendo lido pela minha meia dúzia de leitores até que alguém mandou o link para a própria Elvira Vigna. Ela leu a resenha, procurou o meu perfil no twitter e entrou em contato comigo agradecendo pelo texto e pedindo o meu endereço. Dias depois chegou na minha casa uma edição de Foi o que deu pra fazer em matéria de história de amor, que estava sendo lançado na época, autografada por ela.
Essa história me marcou muito, primeiro porque eu nunca tinha tido contato direto com alguma escritora e segundo pelo gesto de generosidade que me deixou comovido, afinal, sou só um resenhista qualquer e ela era (e continuará sendo) uma das autoras mais importantes da literatura brasileira.
Creio que todos que gostavam dela concordam que a melhor maneira de homenageá-la é lendo a sua obra e a apresentando para que ainda não teve a oportunidade de ser impactado pela prosa fulminante de Elvira Vigna. Creio que o seu legado ainda não foi devidamente reconhecido, mas a história tratará de lhe fazer justiça.
Obrigado por tudo, Elvira.
O texto abaixo é a resenha de Nada a Dizer, que acabou nos colocando em contato.
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‘Nada a Dizer’
Traição é foda, pois, para além do jogo de palavras, dos alívios e fluídos imediatos ou da agonia de se ver inserido na obviedade ridícula de um enredo de novela mexicana, há o impacto mais evidente: alguém sofre. Alguém sofre pra caralho.
Nada a Dizer, escrito por Elvira Vigna e publicado pela Companhia das Letras, é sobre esse alguém.
A protagonista, uma mulher de meia idade, depara-se com uma situação até então impensada, ainda mais a essa altura da vida: Paulo, o seu marido, alguém em quem ela sempre confiou, está lhe traindo com uma mulher 20 anos mais nova. A partir daí ela passa a reconstruir cada detalhe de seu declínio pessoal, para que através da linguagem seja possível significar o seu sofrimento.
Elvira teve uma trajetória muito consistente e deixou como legado uma obra que certamente influenciará diversas gerações de autores nacionais.
É mais sobre cravar as unhas numa ferida do que sobre sarar e seguir em frente.
Os personagens do livro trabalham com tradução, então o olhar minucioso da narradora nos faz pensar que ela está tentando traduzir suas memórias, através de uma sintaxe cheia de lâminas, para que o mundo faça algum sentido sob sua nova perspectiva, sua nova linguagem. Ela é forte (seja lá o que isso signifique) e possui um humor irônico, corrosivo, mas não está imune à fragilidade, já que suas convicções agora são só cacos no chão de um apartamento pequeno.
Se a primeira parte do livro nos coloca a par de todos os eventos que a levaram à atual situação, o restante é uma reflexão aprofundada e dolorida sobre o que restou dela a partir do momento em que não mais se reconhecia.
“Ver não é entender. É só parecido”, diz a narradora, que começa a vasculhar e a repetir todos os detalhes sórdidos e as miudezas da vida do marido, na esperança de que neste ciclo, meio que um eterno retorno do Nietzsche, sua narrativa ganhe alguma clareza. E aí ela sente, se ressente, remói a própria carne para, enfim, se entender.
Enquanto Divórcio, de Ricardo Lísias, outro livro publicado na mesma época e que trata de assunto semelhante, mostra a falência conjugal através de uma perspectiva que acaba por escrotizar a figura “traidora”, Elvira Vigna segue outro caminho e vira sua câmera para focalizar a pessoa traída.
Quando a existência é sedimentada pela relação com o outro, quando o seu eu é constituído por esse outro, as rachaduras que surgem neste amor aos poucos ganham relevo e anunciam um inevitável desmoronamento. Mas apesar disso, nem sempre dá tempo de sair do prédio.