Domingo comemoramos a Páscoa – feriado judaico relido pelo cristianismo. No nada distante 1943, a Páscoa foi comemorada no dia 25 de abril. Para os judeus, dia 19 era o primeiro dia das celebrações.
Em 19 de abril, se inicia o último movimento de resistência no Gueto de Varsóvia. A data, conta-nos Marek Edelman, um dos líderes do movimento, não foi escolhida pelos judeus, mas pelos nazistas, que decidiram iniciar, naquele dia, a liquidação total do Gueto.
Sigamos com doses controladas de história. Desde 1942, estava nos planos dos nazistas a liquidação do Gueto. 19 de abril seria o início da ação final. Mas houve resistência. Edelman dirá, em entrevista dada à jornalista polonesa Hanna Krall anos depois: “Depois, encontrei a cena nos relatórios de Stroop: eles, negociadores, com bandeira branca, e nós, os bandidos, abrindo fogo”.
Talvez o livro onde lemos esta afirmação seja o mais famoso da profícua carreira de Krall, também ela sobrevivente do terror nazista. Zdąrzyć przed Panem Bogiem (1977) não tem tradução para português (em inglês, o título escolhido foi Shielding the Flame; em francês, mais próximo do original: Prendre le bon Dieu de vitesse. Eu prefiro não me meter na encrenca de traduzir este título…).
E como era a vida no Gueto? Não era boa. Estão aí os poemas de Władysław Szlengel para mostrá-lo, está aí vastíssima produção de historiadores para mostrá-lo. Mas havia resistência.
Digressões tradutórias à parte (ainda que sempre possam ser interessantes…), a fala de Edelman revela a importância da história, de escrever a história. Também isto, contra todas as possibilidades, foi feito no Gueto de Varsóvia: os moradores – e não apenas os sobreviventes – narraram suas histórias.
A pessoa responsável por coletar e guardar estas histórias foi Emanuel Ringelblum. Nos seus arquivos (uma palavra impressionante e burocrática, mas eram caixas de manteiga e latas de leite enterradas), havia trechos de jornais, poemas, relatos – majoritariamente escritos em iídiche.
Ringelblum deu oportunidade aos espancados, famintos e humilhados de terem suas vozes ouvidas. Não sobreviveram, mas sua voz humana se fez ouvir. Recentemente, foi lançado um filme-documentário em sua homenagem, chamado Who will write our history (2019).
A história é sempre humana, “a ciência dos homens no tempo”, Marc Bloch dixit. Haver, portanto, as narrativas das vítimas mostra que os horrores nazistas falharam miseravelmente em seu intento final: não desumanizaram as vítimas. Aliás, podemos dizer que desumanizaram a si mesmos.
E como era a vida no Gueto? Não era boa. Estão aí os poemas de Władysław Szlengel para mostrá-lo, está aí vastíssima produção de historiadores para mostrá-lo. Mas havia resistência: manter-se humano. Para encerrar, um poema encontrado no Arquivo Ringelblum (não sei iídiche, traduzi alguns trechinhos do inglês):
“Os pensamentos são livres
Meus pensamentos são livres
eles não podem ser capturados!
[…]
Eu penso o que gosto
O que me dá prazer
Meus pensamentos vêm e vão
São meu tesouro silencioso.
E ninguém pode sabê-los
Prendê-los ou aprisioná-los
Ninguém pode negar
Di gedanken zint fray”
Não sei o nome do autor, não sei a língua do autor. Mas suas palavras resistiram ao nazismo e ao tempo.
E agora passamos a entender o significado de resistência.