“Diante da lei”, um dos contos mais famosos de Franz Kafka, é a metáfora perfeita para o cenário excludente e paranoico das eras Trump e Temer. Escrito por volta de 1915, o relato é, como afirma o tradutor Modesto Carone, o “centro nervoso do romance O Processo”. Criado como uma parábola dentro da narrativa sobre Josef K., o texto foi recuperado por Kafka na coletânea de histórias curtas Um médico rural, publicada em 1919. Àquela altura, o romance havia sido abandonado, permaneceria incompleto e seria colocado no mundo somente em 1925, um ano após a morte do autor – e graças a Max Brod que não seguiu os desígnios do amigos que lhe ordenou queimar toda a sua obra.
Em “Diante da lei”, um camponês tenta entrar “na lei”, porém, logo é barrado pelo porteiro que diz ser “possível”, “mas não agora”. N’O Processo, a lenda é contada ao protagonista por um capelão dentro de uma igreja gótica. Para quem não se recorda da desgraça de Josef K., em uma manhã qualquer ele é surpreendido por dois homens que invadem seu quarto para prendê-lo. Sem entender nada, acredita ter sido caluniado. Como Josef K., o homem do campo é um sujeito comum – sem grandes ambições e sem o desejo de se colocar como obstáculo a alguém. Ambos são detidos – nos mais variados sentidos – pela lei e padecem sobre a burocracia e valorização da elite, daqueles que, por algum motivo, detém o poder.
A sensação é a mesma de 2018: tentamos todos entrar na lei e somos todos barrados pelos porteiros.
Kafka escreveu muito sobre a burocracia. N’O Castelo, K., o agrimensor, não consegue entrar no castelo para fazer o serviço pelo qual foi contratado. Aos poucos, vê-se imerso em um mar de barreiras e perseguições. Parte desse universo foi criado com base na própria experiência do autor enquanto trabalhava em uma agência de seguros. Não é difícil imaginar o quanto Kafka sofria, ainda que fosse um funcionário exemplar. Não demorou para que conseguisse se afastar do escritório para se dedicar à leitura e à escrita.
Em suas poucas linhas, “Diante da lei” consegue expressar esse universo que, poucos anos mais tarde, seria incorporado tão bem pelo Expressionismo Alemão. A Metamorfose ou A Construção são tão claustrofóbicos quanto O Gabinete do Doutor Caligari (1920). A sensação é a mesma de 2018: tentamos todos entrar na lei e somos todos barrados pelos porteiros. Obviamente, Kafka não era um escritor de literatura de antecipação, como Verne, mas a coincidência macabra é inegável.
Vivemos em uma “era de extremos”, como diria Eric Hobsbawm, algo muito parecido com o cenário da Primeira Guerra, testemunhado pelo checo, o entre guerras e, claro, a ascensão do nazismo que desembocou no que bem sabemos – e terminou com a morte de 6 milhões de judeus, incluindo parte da família de Kafka. Ler “Diante da lei”, hoje, é um convite à reflexão mais dolorosa possível: o reflexo do passado no presente.