Conheci o Ferris em alguma (sessão da) tarde da década de 90. Ferris Bueller foi o herói da minha adolescência. Ele, um garoto de Chicago no seu último ano de High School, filho de uma típica família de classe média norte-americana. Eu, uma pré-adolescente que, como a maioria dos pré-adolescentes do mundo, vez ou outra ficava de saco cheio com a rotina de ir pra escola. Ele, um garoto que ousava desafiar o sistema e permitia-se tirar um dia de folga. Eu, uma pré-adolescente que passou a enxergar em Curtindo a Vida Adoidado, um dos clássicos do diretor John Hughes (Paramount Pictures, 1986), uma metáfora para a sua vida.
Quanto ao Oscar. Ah, o Oscar. Tive o privilégio de conhecê-lo em 2012. A partir da leitura de sua história, Oscar Wao revelou-se, para mim, um dos grandes personagens da literatura contemporânea. Um gordo nerd e dotado de toda má sorte de um mundo amaldiçoado por fukús, Oscar é criação de Junot Díaz. Assim como sua criatura, o autor é cidadão de um país que durante mais de trinta anos pereceu sob a ditadura de Rafael Trujillo, uma das mais execráveis do século XX: a República Dominicana, da capital Santo Domingo.
Se existe um elo entre o superpopular Ferris e o supernerd Oscar, algo que une a essência dos dois personagens, eu diria que é a urgência pela vida, fantástica e breve, que passa muito depressa.
Eu nunca fui nerd. Não tive um Atari ou qualquer outro console, não reconheço referências sci-fi, desconheço por completo o RPG e sequer li a trilogia de Senhor dos Anéis ou alguma obra de Stephen King. Apesar da aparência quase andrógina – “é menino ou menina?” – e dos quilos a mais, também não me lembro de ter sofrido qualquer bullying nos meus anos escolares. Mas, de alguma maneira, talvez inconsciente, me identifiquei com Oscar do princípio ao fim de A Fantástica Vida Breve de Oscar Wao, lançado no Brasil pela Record, em 2009. Talvez pela luta contra a balança. Pelo apreço por bibliotecas. Pela relação afetuosa com a avó materna. Ou pela ânsia de viver.
Os dois garotos são contemporâneos dos anos 80, década em que Simple Minds (a banda preferida de Ferris) e Ultraman (o seriado favorito de Oscar) faziam a cabeça da galera. Em Northfield High School, Ferris era o tipo do cara idolatrado por todos os grupos, dos atletas às patricinhas, dos brigões aos nerds. Já no Colégio Don Bosco, Oscar era o tipo de cara zoado por todos os grupos, dos atletas às patricinhas, brigões e, inclusive, também por outros nerds. Entre dois tipos tão antagônicos, parece difícil estabelecer qualquer conexão. No entanto, se existe um elo entre o superpopular Ferris e o supernerd Oscar, algo que une a essência dos dois personagens, eu diria que é a urgência pela vida, fantástica e breve, que passa muito depressa.
Dá para traçar alguns outros paralelos entre a vida dos dois. A começar pela tríade de melhores amigos. Al e Miggs eram os camaradas de Oscar no ensino médio. Os três esquisitões da classe, “avessos por esportes, vidrados em RPG e loucos por quadrinhos”, cultivavam os mesmos gostos nerds. Eram, obviamente, virgens. Título que, a contragosto, restou exclusivo a Oscar depois que Al e Miggs conseguiram, enfim, seduzir duas garotas. Traído pelos amigos (eles tinham vergonha dele!), Oscar passa a distanciar-se, tomando cada vez mais para si o título de perdedor solitário. De perdedor ou de solitário, Ferris Bueller não tem nada. Pelo contrário: é idolatrado pela escola inteira. E encontra em Sloane, sua linda namorada, e em Cameron, o amigo desde a 5ª série, os principais parceiros. Em um plano de Ferris para movimentar a vidinha insonsa do seu brother, os três passam um dia inteiro juntos, entre um rolê com a Ferrari do pai de Cameron e o desfile da comunidade germânica da cidade – a antológica cena ao som de “Twist and Shout”. A sólida relação entre Ferris, Sloane e Cameron só encontra ameaça no fim das aulas, quando os três, inevitavelmente, irão se separar.
Mesmo com amigos a ele tão pouco fiéis, Oscar tinha alguém a quem poderia confiar a vida: a irmã, Lola. A garota sempre tentou resgatar a dignidade do nerd: aconselhava-o a melhorar a aparência, a não se humilhar diante das mulheres (a grande perdição de Oscar) e a ter confiança em si mesmo. Preocupada com a adaptação do irmão na universidade, ela delega a Yunior, seu ex-namorado, a tarefa de cuidar dele no campus da Rutgers New Brunswick. Apesar de a relação entre Lola e o ex não ser das mais estáveis e de Yunior também nutrir certa vergonha de Oscar, aqui se constitui um novo triângulo na vida dele – e, dessa vez, uma parceria um tanto mais sincera.
Por outro lado, Jeanie Bueller parece odiar o irmão por ele conseguir se safar de todas as encrencas em que se mete. Ferris já se ausentou durante nove vezes em todo o semestre letivo, inventa desculpas fajutas para os pais, engana o maître de um restaurante caríssimo de Chicago e, ainda assim, sai ileso a tudo isso. Ele consegue escapar até da perseguição de sua principal ameaça: o diretor Ed Rooney que, assim como Jeanie, inveja a popularidade e a influência de Ferris entre os alunos. Porém, no fim das contas, a garota que, em verdade, admira a vida adoidada do irmão mais velho, acaba o salvando das punições do diretor.
Se Rooney é a maldição de Ferris, o ditador Trujillo é a personificação do fukú, a grande maldição dominicana, sobre a vida da família de Oscar. Graças ao domínio do “Ladrão de Gado Frustrado e Escroto” por todo o país e às crueldades praticadas por ele e seus seguIdores, todo o clã Cabral encontra-se amaldiçoado. Sofrem Oscar, a irmã, os avós de sangue, a avó de criação, o tio. E sofre, principalmente, a mãe, a intempestuosa Belícia Cabral.
Belí é um capítulo à parte na história de Oscar e do livro de Junot Díaz (já resenhado aqui na Escotilha). A mulher comeu o pão que o diabo (ou o fukú) amassou durante toda sua vida. De suas tragédias, restaram a eterna postura “não-estou-de-brincadeira-não” e uma amargura sem tamanho. Belícia é esmagadora. Avasaladora. Totalmente diferente do casal coxinha Katie e Tom Bueller, os pais de Ferris. Belí: uma mãe que até lembrou a minha, a intempestuosa Sueli Regina.
No meu mundo de fabulações, esses dois caras poderiam ser amigos. Chego a pensar que, junto a Lola, Ferris seria uma tábua de salvação na trajetória de Oscar. Se suas filosofias de vida – “as pessoas deveriam confiar mais em si mesmas” ou “quem não se valoriza, não merece a menor consideração” – fossem dirigidos ao nerd, Oscar talvez se safasse, zafa!, de suas maldições e inseguranças. E, ao lado de Bueller (“Bueller? Bueller?”), poderia ter curtido a sua fantástica vida breve adoidado.
O contra dessa capa representa uma bravata: leia mais. Curta mais. “A vida passa muito rápido e, se você não curtir de vez em quando, ela passa e você nem vê”.