Não é preciso ser um entusiasta do cinema ou literatura de horror para reconhecer de imediato criaturas icônicas como Drácula ou o monstro de Frankenstein. Também é fácil, para qualquer espectador ou leitor minimamente versado na cultura pop, identificar os clichês narrativos mais difundidos no gênero. Essa onipresença de certas imagens, ambientações e temáticas clássicas do horror no imaginário do público se deve, em partes, à extensa obra de Stephen King, com seu longo histórico de best-sellers e adaptações cinematográficas de sucesso. Responsável por influenciar um grande número de autores dos mais diversos gêneros, não é surpresa que o horror de King tenha encontrado um herdeiro literário digno em seu próprio filho, Joe Hill.
A reverência ao trabalho do pai é implícita e explicitamente explorada na obra do jovem autor, que já inclui quatro romances e uma coletânea de contos (publicados no Brasil pela Editora Arqueiro). Referências à mitologia estabelecida por Stephen King ao longo de décadas pontuam os livros do filho – mas o vínculo direto com a obra paterna para por aí. Desde sua estreia em 2007, com A Estrada da Noite, Joe Hill busca consolidar seu nome como um dos principais expoentes do horror contemporâneo, com sua voz e assinatura dissociadas do sobrenome do pai.
Trata-se, afinal, de uma escolha sábia: distanciando-se do peso que o nome King carrega dentro do gênero, Hill é capaz de criar, com maior liberdade e energia, universos sombrios completamente seus. O domínio de uma prosa particularmente poderosa para o horror (limpa, lírica e profundamente reflexiva) e a criação de antagonistas memoráveis e protagonistas absolutamente humanos são as principais marcas de sua obra. A similaridade com a linguagem de Stephen King está apenas na habilidade que Joe Hill demonstra ao explorar as múltiplas facetas do cotidiano, ao encontrar o terror no mundano e ao evidenciar o lado obscuro de todas as interações humanas.
Distanciando-se do peso que o nome King carrega dentro do gênero, Hill é capaz de criar, com maior liberdade e energia, universos sombrios completamente seus.
O fantástico na escuridão
Sua primeira publicação, a coletânea Fantasmas do Século XXI, reúne contos de tons e temáticas bastante variados, que vão do sinistro ao weird. Dentre os romances, A Estrada da Noite é a história de horror mais clássica, apresentando uma versão contemporânea do arquétipo do espírito vingativo, explorando temas como rancor e redenção em uma trama veloz e horripilante.
A partir de seu segundo romance, Amaldiçoado (adaptado ao cinema com Daniel Radcliffe no papel principal), o autor abandona as amarras do terror tradicional e passa a criar verdadeiras dark fantasies, narrativas especulativas em que o tenebroso e o surreal se mesclam de forma similar a uma espécie de realismo mágico imerso no sombrio. A trama tem como foco a estranha jornada de Ignatius Perrish, que desperta de uma noite de embriaguez com chifres na testa e estranhos poderes telepáticos, e aborda temáticas universais como o remorso, a juventude e o amor de forma surpreendentemente introspectiva e delicada.
Se em A Estrada da Noite o autor já comprova ser capaz de contar uma excelente história de terror, Amaldiçoado confirma sua habilidade em transcender os limites do gênero e criar uma narrativa mais pessoal, inovadora e memorável. É com Nosferatu, contudo, que Joe Hill finalmente se estabelece não apenas como herdeiro de Stephen King, mas como seu rival direto nas prateleiras das livrarias e listas de best-sellers.
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Extenso, o romance narra a batalha vitalícia de Vic McQueen com seus demônios pessoais e seus encontros com o serial killer Charlie Manx. Dotado de poderes sobrenaturais, o antagonista Manx une o carisma de Charles Manson a uma releitura do vampiro Nosferatu, resultando em uma presença poderosa e genuinamente aterrorizante que a protagonista deve combater. Nesse livro, Joe Hill estabelece um perfeito equilíbrio entre o horror clássico e a fantasia sombria contemporânea, e sua prosa atinge a maturidade de um autor em pleno auge de sua força criativa.
Ainda, Locke & Key (série de HQs que, vergonhosamente, ainda não foram traduzidas para o português), escrita por Hill e brilhantemente ilustrada por Gabriel Rodríguez, demonstra a grande versatilidade do autor, que, como Gaiman, eleva a linguagem dos quadrinhos com a sutileza de um romancista para narrar uma história fantástica sobre luto, amadurecimento e a força dos laços familiares. A escolha pelo meio dos quadrinhos é compreensível: afinal, os sonhos sombrios de Joe Hill são vívidos demais para limitarem-se a uma única mídia.
Neste mês, a Editora Arqueiro lança o quarto e mais recente romance do autor, Mestre das Chamas. A Escotilha trará uma análise completa da obra em breve.