“É preciso repetir incansavelmente esta verdade: conhecer Brecht é muito mais importante do que conhecer Shakespeare ou Gogol”. A frase é do crítico francês Roland Barthes a respeito do poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898 – 1956). Mais conhecido por suas peças, roteiros para o cinema e poemas, Brecht também dedicou-se à prosa, ainda que em menor medida. Suas narrativas curtas são uma tentativa, como explica Vilma Botrel Coutinho de Melo, de se contrapor ao modelo e à “forma do romance burguês”.
Nesse sentido, é curioso notar a relação de Bertolt Brecht com seu personagem, o Sr. Keuner. Durante trinta anos (entre 1926 e 1956, ano de sua morte), Brecht escreveu quase uma centena de pequenas histórias envolvendo esse personagem misterioso, publicando apenas alguns de maneira esparsa. Em 2002, foram descobertas na Suíça outras quinze histórias inéditas do Sr. Keuner, na chamada “Pasta de Zurique”. No Brasil, o conjunto dessas histórias foi reunido sob o título de Histórias do Sr. Keuner e lançado em 2006, pela Editora 34, com tradução de Paulo César de Souza.
A primeira referência que o personagem de Brecht sugere – a abreviação de Keuner por K. – é a semelhança com K., personagem também recorrente na obra de Kafka. Na história da literatura há vários exemplos de personagens que surgem com certa frequência nas obras de seus autores, criando uma relação de reconhecimento e identidade com estes. Stephen Dedalus, de James Joyce, e Arturo Belano, de Roberto Bolaño, mais do que personagens recorrentes nos romances desses escritores, são muitas vezes identificados como alter ego de seus criadores. Seria possível estender essa ligação a Brecht e ao sr. Keuner?
O filósofo K.
Entre tantas outras características, o sr. Keuner não só possui traços de filósofo, como ele mesmo coloca-se na condição de “sábio”. Em muitas passagens, o narrador refere-se ao sr. K. como “aquele que pensa”. Apesar da estrutura das narrativas em Histórias do sr. Keuner serem curtas, em sua maioria essas histórias possuem um profundo grau de penetração e um forte sentido ético.
Em “Forma e Conteúdo”, temos um exemplo desse viés do pensamento voltado à crítica estética.
A clara posição política do personagem parece refletir, em muitos casos, o pensamento de Brecht sobre a moral, os costumes, a política ou a estética.
“O sr. K. observava uma pintura na qual alguns objetos tinham uma forma bem arbitrária. Ele disse: ‘A alguns artistas acontece, quando observam o mundo, o mesmo que aos filósofos. Na preocupação com a forma se perde o conteúdo. Certa vez trabalhei com um jardineiro. Ele me passou uma tesoura e me disse para cortar o loureiro. A árvore ficava num vaso e era alugada para festas. Por isso tinha que ter a forma de uma bola. Comecei imediatamente a cortar os brotos selvagens, mas não conseguia atingir a forma de uma bola, por mais que me esforçasse. Uma vez tirava demais de um lado, outra vez de outro. Quando finalmente ela havia se tornado uma bola, esta era pequena demais. O jardineiro falou, decepcionado: ‘Certo, isto é uma bola, mas onde está o loureiro?’”
A base do pensamento de Brecht é o materialismo dialético de Marx, no entanto, nas Histórias do sr. Keuner predomina menos um pensamento que privilegia a ação ou o aspecto econômico e seu papel determinante dentro da sociedade capitalista de classe, do que a maneira e o modo como as relações entre os homens podem ser estabelecidas em momentos críticos como diante da ascensão do nazismo, do exílio, da guerra, da fome, da censura, da opressão. Walter Benjamin, diz Vilma Botrel, via o sr. Keuner com “traços chineses, imensamente astuto, imensamente reservado, imensamente gentil, imensamente idoso, imensamente capaz de adaptação”.
São 102 narrativas em que Brecht opera com um movimento de desvelamento, de explicação de certas engrenagens e relações que passam do micro a macroestrutura social. Pequenas histórias na qual o autor dialoga em alguns momentos com o modelo das parábolas. Em geral, as ideias e observações do sr. Keuner são expressadas a partir de perguntas feitas a ele. Reflexões que abarcam o ato criativo, o poder da imaginação, a postura, a conduta e a sabedoria dos homens, numa tentativa de colocar a arte a serviço do combate à ideologia do capital, em suas diferentes formas e esferas. Em tempos de recrudescimento do discurso autoritário e filisteu, o pensamento de Brecht e seu personagem K. tornam-se ainda mais atuais em uma realidade tão adversa e inóspita.