No filme Janela Indiscreta (1954), o cineasta Alfred Hitchcock mistura voyeurismo e paranoia para contar a história de um sujeito preso a uma cadeira de rodas, que passa seus dias a observar a vida dos vizinhos. Em A Garota no Trem, lançado este ano no Brasil pela editora Record, a estreante Paula Hawkins se apropria de elementos semelhantes para narrar o cotidiano de uma jovem que faz o mesmo trajeto para o trabalho rumo à Londres todos os dias e, da janela do trem, observa as casas próximas aos trilhos. Tal como no clássico do cinema, a protagonista praticamente decora o comportamento das pessoas que observa à distância e essa rotina só é quebrada no dia em que ela acredita ter testemunhado um crime, que aparentemente envolve o desaparecimento de uma pessoa.
Trata-se de uma leitura de entretenimento, então não vá cobrar da pobre escritora reflexões muito profundas ou aquela crise existencial fofinha que você adora sentir lendo uma Virginia Woolf da vida. Contudo, o livro escrito por Paula Hawkins consegue se manter a anos luz de uma podreira como A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert, de Joël Dicker, por um motivo bem simples: as personagens são interessantes e críveis. Neste aspecto, a comparação que a crítica vem fazendo com Gillian Flynn e seu excelente Garota Exemplar faz bastante sentido.
Não dá para falar muita coisa sobre Rachel, a garota ali do título, sem correr o risco de estragar tudo com spoilers, portanto basta você saber que ela tem um sério problema com álcool e que está indo firme e forte rumo ao abismo. Sua degradação é angustiante e pode gerar certa identificação no leitor que eventualmente já tenha sofrido aquilo que é conhecido como “amnésia alcoólica” (eu particularmente não sei do que se trata, só ouvi falar, veja bem… Será que vai chover?). Enfim, seu estado psicológico é essencial tanto para emprestar dramaticidade e complexidade à trama, quanto para refletir sobre a construção da ficção. Afinal, os elementos que desaparecem da nossa memória são sempre substituídos por algo inventado? Será que eles desapareceram mesmo? Curioso é que o próprio leitor se vê na mesma posição da personagem (e aí estar bêbado ou não é uma opção de cada um), uma vez que ele não possui todas as informações e vai tentando encaixar suas próprias teorias para solucionar o mistério.
Curioso é que o próprio leitor se vê na mesma posição da personagem, uma vez que ele não possui todas as informações e vai tentando encaixar suas próprias teorias para solucionar o mistério.
O alcoolismo é tratado de forma bastante convincente, assim como a falência dos relacionamentos dos casais que surgem ao longo da história. A trama se passa na Inglaterra, mas está presente certo clima de declínio do Sonho Americano, aquele da família que tenta parecer perfeitinha à distância, mas que começa a ganhar contornos um tanto sombrios quando nos aproximamos.
A revelação do mistério não chega a surpreender muito e se você ler com atenção, sem mexer WhatsApp e assistir TV ao mesmo tempo, por exemplo, provavelmente matará a charada ali pela metade do livro. É uma pena, mas isso não significa que o interesse pela história se perca, pois ainda fica a curiosidade em saber como diabos aquilo vai terminar. A autora alterna os capítulos entre algumas personagens e também entre as idas e vindas do trem, de manhã e à noite. Aos poucos ela vai encaixando as peças do quebra-cabeça numa narrativa absolutamente viciante, do tipo que faz o leitor sempre quebrar a promessa de ler “apenas mais um capítulo”.
Em resumo, A Garota no Trem é um livro instigante e que não trata o leitor como se ele fosse um asno (estou falando com você, Joël Dicker). Se você é fã de suspense policial, prepara-se para algumas horas de boa diversão.
A GAROTA NO TREM | Paula Hawkins
Editora: Record;
Tradução: Simone Campos;
Tamanho: 378 págs.;
Lançamento: Julho, 2015.