Geralmente os livros estampam duas ou três frases de alguém importante dizendo que você está prestes a ler o melhor romance da sua vida. O livro de Joël Dicker, publicado pela editora Intrínseca, tem 25. Isso mesmo, são vinte e cinco frases, divididas em duas páginas, com elogios que vão de “magistral” até “lembra o melhor de Truman Capote”. É aí que o leitor menos afeito às jogadas de marketing liga o alerta de “lá vem bomba”.
A desconfiança tem sua razão de existir e inclusive vem a se confirmar parcialmente ao longo das quase seiscentas páginas do tijolão. Mas cabe dizer que Joël Dicker conseguiu uma proeza: ele escreveu um livro que se encaixa na inusitada classificação “É ruim, mas é bom”. Digo isso, pois me vi odiando a forma como Dicker escreve, ao mesmo tempo em que estava ansioso pra descobrir os segredos da história que ele criou.
Já explico isso melhor, antes vejamos do que se trata esse novo fenômeno a partir do qual “a literatura contemporânea nunca mais será a mesma”, segundo a contracapa do livro.
Marcus Goldman, o nosso narrador, é um escritor famoso e arrogante que fez muito sucesso com seu primeiro livro, mas depois entrou numa crise criativa. Pressionado por seu agente literário a entregar um novo best-seller nas próximas semanas, ele resolve viajar para uma cidadezinha e encontrar Harry Quebert, um escritor respeitado no meio literário e que foi o seu grande mentor na juventude. Aquilo que poderia ser a solução de seus problemas acaba se tornando o início de uma intricada trama policial, pois pouco tempo depois do encontro, o corpo de Nola Kellergan, uma garota de quinze anos desaparecida desde 1975, é encontrado enterrado no quintal da casa de Quebert. Pra piorar, dentro da cova também foram encontrados os originais do livro que o tornou famoso na época. A partir daí, Marcus se transforma numa espécie de detetive amador e corre contra o tempo para tentar provar a inocência do amigo, acusado de assassinato.
História curiosa, certo? Mas nem tudo são flores nesse mundinho com cores de Edward Hopper.
Joël Dicker escreve muito mal do ponto de vista de linguagem e de desenvolvimento de personagens (principalmente as femininas), mas ao mesmo tempo ele consegue arquitetar uma trama que desperta a curiosidade do leitor, o que talvez explique a popularidade do livro. Sua narrativa é cheia de lugares-comuns e algumas referências constrangedoras. A tentativa de emular Nabokov, por exemplo, acaba virando aquilo que a crítica literária mais especializada define como “vergonha alheia”. Ele chega ao disparate de praticamente repetir, várias e várias vezes, as primeiras linhas do clássico da literatura mundial, que mostram a fascinação de Humbert Humber pela sonoridade das sílabas na palavra “Lolita”.
Sua narrativa é cheia de lugares-comuns e algumas referências constrangedoras.
O autor consegue organizar muito bem diversas linhas temporais, já que passado e presente se misturam, assim como a literatura e a “realidade”. A ideia de um livro dentro do livro não é original, mas é muito bem executada, pois dá uma dinâmica interessante para a narrativa, além de abrir margem para uma discussão sobre relato e ficção. O tropeço está na qualidade questionável da escrita do autor. Em alguns momentos, temos acesso a partes do livro As Origens do Mal, de Quebert, obra que seria uma das mais importantes do século passado, só que esses trechos são tão piegas, tão sentimentaloides, que fariam Nora Roberts corar de vergonha. E aí, quando um personagem diz que uma garota de 15 anos corrigia e revisava o texto, o mesmo texto que virou livro e que supostamente influenciou a literatura norte-americana, aí fica até difícil conter a gargalhada.
O fato de o narrador ser repulsivo não chega a incomodar muito, é uma opção muito válida e que já vimos funcionar em outras obras, creio que o problema maior de A Verdade Sobre o Caso Harry Quebert está no tratamento dado às personagens femininas. Todas as meninas e mulheres do livro, sem exceção, são caricatas, retratadas como pessoas histéricas, sensuais e que estão sempre desesperadas por um homem que mude suas vidas. Em geral, elas não possuem dignidade e estão dispostas a qualquer coisa para agradar os homens ao redor, sendo o sexo uma arma maligna utilizada para corromper a sociedade. Há uma tentativa de reproduzir um pensamento machista da época, mas simplesmente não existem nuances que nos convençam de que aquelas garotas poderiam ser reais. Chega a ser irritante. Se Nabokov nos apresenta uma Lolita absolutamente complexa, Joël Dicker nos entrega uma Nola superficial e pouco crível. É como se o autor tivesse assistido muita TV aberta no domingo e a partir daí reunido material para compor os personagens de sua “obra prima”.
Não fosse o mistério do “quem matou”, pouca coisa restaria para nos segurar ao longo de 572 páginas. A sorte de Dicker é que a curiosidade matou não só o gato, mas também o leitor.
A VERDADE SOBRE O CASO HARRY QUEBERT | Joël Dicker
Editora: Intrínseca;
Tradução: André Telles;
Tamanho: 576 págs.;
Lançamento: Maio, 2014.