No ano em que tivemos uma das maiores crises no sistema carcerário do país, chega às livrarias, publicado pela editora Record, Assim na terra como embaixo da terra, novo romance de Ana Paula Maia, que fala justamente sobre o universo precário de uma penitenciária no meio do nada.
O ambiente árido e isolado nos remete às histórias pós-apocalípticas, estilo Mad Max 2, mas na verdade aquele local está perdido não apenas no mapa, mas também no tempo. Trata-se de um presente angustiado por causa de suas pendências com o passado e pela total falta de perspectiva de uma amanhã. O futuro é o fim, carne que a terra come.
A história curtinha, quase uma novela, se passa numa colônia penal (olá, Kafka!) que será desativada. Restaram apenas alguns presos e Melquíades, o representante da lei e do Estado, responsável por manter a ordem de maneira não muito ortodoxa: vez ou outra ela pega sua arma e, tal como na caça de javalis, libera a tornozeleira (uma bomba que é acionada assim que o usuário coloca os pés do lado de fora da colônia) e deixa que o detento corra livre, para logo em seguida sair à caça, o que explica o número reduzido de pessoas naquelas instalações.
Ana Paula Maia não pretende fazer uma comparação leviana, mas apontar para fato de que, desde nossas raízes, é o sangue negro que sempre esteve atrás das grades.
Não há nenhum inocente ali, nem mesmo quem supostamente deveria estar do lado lei, então a lógica reacionária do bandido bom é bandido morto, se aplicada, significaria fazer com que a autoridade local tivesse que virar o cano de sua arma para a própria cabeça. O isolamento e a falta de respostas (os personagens estão sempre aguardando notícias oficiais sobre a desativação do local, mas elas nunca chegam), bem como o calor e o tempo árido, tornam o ambiente insuportável, favorecendo toda sorte de conflitos e insanidades. Eles não são tantos para se comportarem como gado indo para o abate, mas são o suficiente para morrerem como animais.
A terra utilizada para enterrar as vítimas de Melquíades já abrigava corpos de vítimas ainda mais antigas, pois aquela colônia havia sido construída onde antes funcionava uma fazenda de escravos. Ao misturar os corpos de criminosos e de escravos, Ana Paula Maia não pretende fazer uma comparação leviana, mas apontar para fato de que, desde nossas raízes, é o sangue negro que sempre esteve atrás das grades.
Além da questão do isolamento social, há também uma relação ao domínio do corpo, já que o sujeito submetido ao confinamento perde o direito sobre seu próprio corpo, que passa a ser posse do Estado. A visão da autora a respeito do encarceramento é bastante direta:
“O confinamento de homens assemelha-se a um curral de animais. O gado é abatido para se transformar em alimento; os homens, por sua vez, são abatidos para deixarem de existir. Não é um lugar recuperação ou coisa que o valha, é um curral para se amontoarem os indesejados, muito semelhante aos espaços destinados às montanhas de lixo, que ninguém quer lembrar que existem, ver ou sentir seus odores”.
Em tempos de debates acalorados sobre representatividade na literatura, é interessante notar que não há nenhuma personagem feminina no livro de Ana Paula Maia, pois o que parece interessar à autora não é a reprodução ou problematização suas próprias experiências, muito pelo contrário, há uma clara inclinação à exploração de um outro universo, bem distante do cotidiano de uma escritora.
O projeto gráfico do livro merece destaque, pois a capa criada por Leonardo Iaccarino traz o desenho espetacular de um javali e as letras do título e do nome da autora são em alto-relevo, coisa finíssima.
Para quem já conhece o trabalho de Ana Paula Maia, Assim na terra como embaixo da terra pode representar um gostinho de decepção, pois a expectativa diante um livro da autora é de que nos deparemos como um festival de violência e degradação humana (algo que também se espera de um livro do Edyr Augusto, por exemplo).
Há bastante brutalidade no novo livro, é claro, mas nada que chegue a chocar (obviamente isso é bem subjetivo e pode variar de leitor para leitor, mas sei lá, é difícil quem já não tenha visto muita desgraceira nessa vida), até porque ele se passa no mesmo universo das obras anteriores, mas é como se autora tivesse pisado no freio, o que é uma pena.
Apesar disso tudo, no computo geral ainda assim o saldo é bem positivo. Assim na terra como embaixo da terra é um livro rápido e impactante, que aborda temas atuais e segue uma linha muito própria, um tanto diferente da massa de escritores que tendem a se repetir nos mesmos dramas de classe média urbana. Ana Paula Maia segue o seu próprio caminho e ele é bem brutal. Bom pra nós.
ASSIM NA TERRA COMO EMBAIXO DA TERRA | Ana Paula Maia
Editora: Record;
Tamanho: 144 págs.;
Lançamento: Maio, 2017.