Depois de 24 anos em que teve a obra esgotada, Gilka Machado é resgatada em Gilka Machado – Poesia Completa (Selo Demônio Negro, 2017), coletânea organizada pela pesquisadora Jamyle Rkain. A poeta carioca foi a primeira a escrever poesia erótica no Brasil. Para Mário de Andrade, era, com Cecília Meireles, a voz poética feminina mais importante do Brasil nos anos 20. Devido à ousadia em declarar seus desejos sexuais, depois da estreia, teve uma trajetória errática, perturbada por críticas violentas.
Gilka Machado nasceu em 12 de março de 1893. Aos 14 anos, ao vencer um concurso literário de um jornal, teve a autoria dos poemas questionada. Eram adultos demais para uma “criança”. Em 1915, publica o primeiro livro, Cristais partidos. Casou com o poeta Rodolpho Machado, com quem teve dois filhos. Em 1923, o marido morreu. Pobre e viúva, trabalhou como diarista na Estrada de Ferro Central do Brasil. Como o salário não conseguia sustentar a família, abriu uma pensão.
Gilka iniciou um novo caminho na literatura brasileira. De musa, a mulher passou a ser sujeito do discurso. Mas pagou um alto preço pela postura de vanguarda. De acordo com Maria Lucia Dal Farra, a segunda obra, Estados de alma, publicada em 1917, retrai-se das afirmações sensuais, e é uma capitulação diante das críticas “de uma sociedade que reservava, para a mulher, um lugar de pura alienação social.” Em 1922, publica Mulher Nua, e Sublimação, em 1938. Em 1968, reúne sua obra na antologia Velha Poesia.
Em termos de estilo, Gilka está situada no grupo dos pré-modernistas. Em sua estreia, duas mulheres, Francisca Julia (1871-1920) e Julia Lopes de Almeida (1862-1934), são tidas como precursoras da literatura feminina no Brasil. Mas Francisca Julia é parnasiana e impessoal, sem traços de gênero. Já Júlia Lopes de Almeida segue o estereótipo do feminino como um bem familiar.
Gilka iniciou um novo caminho na literatura brasileira. De musa, a mulher passou a ser sujeito do discurso.
Embora a tenha comparado a Cecília Meireles, em 1928, Mário de Andrade a criticou, anteriormente, por não ter moral. O poeta mudou de opinião a respeito, entendendo os preconceitos que cercavam a obra de Gilka. Em revistas e nas edições de livros, Gilka tem seu valor reduzido de “poeta notável” à “mãe de família”, perdendo a voz sensual e rebelde.
A despeito da incompreensão, seus poemas são incluídos em coletâneas estrangeiras. Em 1933, num concurso da revista O Malho, é eleita a melhor poeta brasileira por um júri de 200 intelectuais. A partir deste ano, viaja para a Argentina, EUA e Europa. Em 1979, após a publicação de Poesias Completas, recebe o prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras.
Além do preconceito por extravasar desejos de mulher, Gilka sofreu outros dois preconceitos: de classe e de cor. Humberto de Campos supunha que o ardor dos versos eram devidos à “mentalidade criola”, embora fantasiosos. Afrânio Peixoto a chama de mestiça, e deplora por viver num “pardieiro, onde tudo respirava à pobreza e quase à miséria.” Talvez, hoje, se viva, Gilka seria uma das convidadas da Festa Literária de Paraty, repaginada para autores negros, homossexuais e mulheres na edição 2017.
“Ser mulher”
Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida; a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…
Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…
Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…
Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!
“Mal assomou à minha ansiosa vista”
Mal assomou à minha ansiosa vista
o teu perfil que invoca o dos rajás
senti-me mais mulher e mais artista,
com requintes de sonhos orientais,
Do teu amor à espléndida conquista,
minha carne e minha alma são rivais:
far-me-hei a sempre inédita, a imprevista,
para que cada vez me queiras mais.
Feitas de sensações extraordinárias,
aguardam-te em meu ser mulheres várias,
para teu gozo, para teu festim.
Serás como os sultões do velho oriente,
só meu, possuindo, simultaneamente,
as mulheres ideais que tenho em mim…
“Meu glorioso pecado III”
A que buscas em mim, que vive em meio de nós
E nos unindo nos separa, não sei bem aonde vai, de onde
Me veio, trago-a no sangue assim como uma tara.
Dou-te a carne que sou…mas teu anseio fora possui-la –
A espiritual a rara, essa que tem o olhar ao mundo alheio,
Essa que tão somente astros encara.
Por que não sou como as demais mulheres ?
Sinto que, me possuindo, em mim preferes aquela que
É o meu íntimo avantesma…
E, ó meu amor, que ciúme dessa estranha, dessa rival que os
Dias me acompanha, para ruína gloriosa de mim mesma!
“Particularidades 2”
Tudo quanto é macio os meus ímpetos doma,
e flexuosa me torna e me torna felina.
Amo do pessegueiro a pubescente poma,
porque afagos de velo oferece e propina.
O intrínseco sabor lhe ignoro, se ela assoma,
no rubor da sazão, sonho-a doce, divina!
gozo-a pela maciez cariciante, de coma,
e o meu senso em mantê-la incólume se obstina…
Toco-a, palpo-a, acarinho o seu carnal contorno,
saboreio-a num beijo, evitando um ressábio,
como num lento olhar te osculo o lábio morno.
E que prazer o meu! que prazer insensato!
pela vista comer-te o pêssego do lábio,
e o pêssego comer apenas pelo tato
GILKA MACHADO – POESIA COMPLETA | Gilka Machado (org. Jamyle Rkain)
Editora: Demônio Negro;
Quanto: R$ 42,60 (432 págs);
Lançamento: Março, 2017.