Em Guerra e Poesia — Dispositivos Bélico-Poéticos do Modernismo (UFRGS, 2014), Rita Lenira de Freitas Bittencourt tece relações entre poemas e pinturas de autores brasileiros e argentinos e a Guerra do Paraguai (1864-1870). A pesquisa resulta de uma dissertação de mestrado que a autora defendeu pela Universidade Federal de Santa Catarina. Seu foco é a análise de canções populares e poemas de autores modernistas, como Jorge de Lima, Murilo Mendes, Ascenso Ferreira, Ronald de Carvalho, Raul Bopp, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, Jorge Luis Borges e pinturas de Alberto da Veiga Guignard, Xul Solar, Olivério Girondo, Tarsila do Amaral e Carybé.
Nem todas as obras se referem à Grande Guerra, como é conhecido o conflito sul-americano. Algumas se articulam como “dispositivos bélico-poéticos” criados pelos modernistas para confrontar políticas nacionalistas.
Célebre é o o fato de a guerra ter dizimado a população masculina adulta do Paraguai, e, acreditam muitos, ter provocado a estagnação econômica do país. O ditador Solano López foi o responsável pela militarização da nação paraguaia — à época do confronto, contava com 70 mil soldados. Para combater tal exército, o governo brasileiro convocou os “Voluntários da Pátria”, uma tropa formada por combatentes não familiarizados com técnicas militares. Muitos dos voluntários eram escravos enviados pelos patrões para combater em seu lugar. Graças a essa alforria, muitos negros entraram para a carreira militar e suas famílias ascenderam socialmente. Isso influenciou, duas décadas mais tarde, o fortalecimento do movimento pela libertação dos escravos.
É o quadro “A família do fuzileiro naval”, de Alberto Guignard, o retrato mais fiel da ascensão social dos negros no império, devido ao evento bélico. A pintura mostra ao fundo a paisagem do Rio de Janeiro, detalhando o pão-de-açúcar. No interior de uma casa em estilo colonial, dispõe-se uma família formada por três adultos negros e três crianças. Dois homens e um menino vestem trajes de marinheiro. Os trajes da mulher negra mimetizam os da senhora branca europeia da Casa Grande. Sentada numa poltrona, é a mulher que representa o empoderamento dos negros.
Rita resgata versos populares criados por soldados ainda na guerra.
Não tão conhecidas são as implicações políticas do confronto bélico. A Inglaterra tinha interesse em vender armas para os países da tríplice aliança — Brasil, Argentina e Uruguai. Para comprar tais armas, o Brasil contraiu uma dívida fantástica, o maior montante já emprestado até hoje. A abolição da escravatura e a dívida externa foram fatores que colaboraram para a mudança de regime, de monarquia para república.
Rita resgata versos populares criados por soldados ainda na guerra. As quadras populares satirizam a figura do ditador Solano López e podem ter influenciado Murilo Mendes na escritura de “Tango de Solano López” e outros poemas sobre a guerra. A presença maciça de negros soltava a veia criativa das tropas, com desafios, trovas, “sambas guerreiros” e outras formas poéticas populares. Enquanto a “plebe rude” se divertia satirizando as figuras militares, os poetas da elite buscavam uma identidade nacional descolada da imagem forjada pelo patriotismo exacerbado. “Tango de Solano López” satiriza a figura do ditador paraguaio, numa língua macarrônica, apresentando uma caricatura entre passional e o cômico. insinuando relações perigosas com a Inglaterra:
Tango de Solano López
Jô estava en el cabaré,
No hacía mal a ninguém:
Até pensaba em mí madre,
Tres muchachos me pegáron
Pelas orelhas, banidos,
Macaquitos vão na frente
Batendo o rabo, guinchando,
Jô não consigo pegáos,
A guerra me declaráron,
Perdi milhares de heróis,
A guerra era contra mi.
Atras daqueles heróis
Só procuravam a mi:
Telegrafei para Londres,
Precisava desse apoio
Para ser imperador.
Não só me pegam na orelha,
As orelhas me cortaram,
Mas meu rincão defendi:
Em castigo de mis farras
Ao Brasil deixé a iorelha
Em testamento, olaré:
Mas deixei ao Paraguai
Mi amante corazón.
A arte erudita é um instrumento útil para o discurso nacionalista. Grandes artistas, como Gonçalves Dias, Castro Alves, Cândido Portinari, serviram para representar o nacionalismo, defendendo discursos de exaltação à Pátria. Os que não comungavam desse evangelho perfilavam a tribo dos nômades. Guignard, alinhado a ideias de uma identidade latino-americana, construída por intercâmbios com Jorge Luis Borges e Xul Solar, forjava uma alternativa às identidades oficiais. Também Ascenso Ferreira, Ronald de Carvalho, Raul Bopp, Manuel Bandeira, Joaquim Cardozo, bebendo nas vanguardas modernistas citam a diversidade cultural brasileira e denunciam o discurso da identidade homogênea.
A pesquisa de Rita Lenira é rica em detalhes — para explicar as origens do desafio nordestino, uma nota de rodapé traz, de forma resumida, a história da tradição dos trovadores orais — e bifurcações — belos poemas com inovações formais, como o “Revolução de vocábulos”, de Oliverio Girondo. Na guerra da rearticulação histórica, os dispositivos bélico-poéticos continuam tendo a função de contra-atacar verdades oficiais, constituindo a essência crítica da poesia e da literatura.
[box type=”info” align=”” class=”” width=“”]GUERRA E POESIA – DISPOSITIVOS BÉLICO-POÉTICOS DO MODERNISMO | Rita Lenira de Freitas Bittencourt
Editora: UFRGS;
Quanto: R$ 30,00 (248 págs);
Lançamento: Janeiro, 2014.[/box]