Dois anos atrás, recebi de um caro amigo um enorme pacote de presente – colorido, carnavalesco, quase… circense. “Esse é um livro muito especial para mim”, disse ele. A embalagem continha um gordo exemplar de It, A Coisa, o aterrorizante clássico de Stephen King – e de toda a literatura de horror contemporânea. A epônima Coisa – sob o manto do maléfico palhaço Pennywise – estampava a capa da edição, branca e manchada de vermelho sangue. Como o amigo relapso que sou, deixei o pesado livro na estante, entre tantos outros na famigerada fileira “Ainda Vou Ler”. Após a estreia do trailer da nova adaptação cinematográfica, contudo, fui lembrado do presente – e, logo em seguida, arrebatado pela narrativa de uma das mais sombrias fantasias de todos os tempos.
Transcendendo os limites do horror enquanto gênero de nicho, A Coisa é o triunfo de Stephen King como exímio contador de histórias, capaz de desenvolver enredos psicologicamente complexos de forma minuciosa e de dar ritmo implacável a narrativas extensas. Seus clássicos, embasados em sua mitologia própria (surreal, mas terrivelmente verossímil) e tematicamente voltados à análise da escuridão humana em todas as suas formas, mesclam um alto grau de realismo a um conhecimento sociológico e folclórico de toda sua terra, em especial de seu estado natal de Maine.
A Coisa conta a história dos sete membros do Clube dos Perdedores, um aglomerado de desajustados (do líder Bill, gago e soturno, ao tímido Ben, obeso e brilhante) que se vê em conflito com a epônima Coisa, monstruoso horror lovecraftiano que assume a forma dos mais terríveis pesadelos para atrair, assassinar e devorar as crianças de Derry, Maine.
Um dos grandes êxitos do livro é o artifício temporal que King emprega com maestria, alternando a narrativa entre passado e presente para tecer um clima de horror crescente e cinética constante.
A cidade fictícia, amaldiçoada há séculos por essa criatura fétida e eternamente faminta, é descrita nos mínimos detalhes, tornando-se uma extensão geográfica do antagonista da obra. Ressurgindo a cada 27 anos, a Coisa é o avatar da podridão de Derry (e, por extensão, de toda a sociedade norte-americana) e também a encarnação do mais primordial dos horrores: o medo do próprio medo.
Tempo e terror
Um dos grandes êxitos do livro é o artifício temporal que King emprega com maestria, alternando a narrativa entre passado e presente para tecer um clima de horror crescente e cinética constante. No passado, a história traz como foco o primeiro embate do Clube dos Perdedores, ainda crianças, com a Coisa; no presente, após o início de um novo ciclo de mortes atribuídas à criatura, os membros do Clube, já adultos, retornam a Derry para um combate final com o antigo pesadelo de infância.
Ao alternar entre essas duas sagas, complementares mas fundamentalmente distintas, King mantém um clima de terror psicológico absolutamente visceral, ao mesmo tempo em que lida, de forma inesperadamente delicada, com os mais fundamentais dilemas humanos – amor, sexo, vingança, companheirismo, lembrança, legado, dever e, principalmente, a brutal metamorfose da infância à idade adulta.
É claro, as ambições do autor com o escopo dessa narrativa seriam infundadas se esta não contasse com personagens fortes, tridimensionais e memoráveis – e esse é outro ponto de excelência de A Coisa, elevando a obra sobre outros clássicos do horror (e do próprio King). Sem exceção, os sete membros do Clube dos Perdedores são minuciosamente desenvolvidos, cada um com seu histórico extenso e maneirismos pessoais. Mais impressionante ainda é a constância dessas personagens, cujos pontos de vista são apresentados sucessivamente para que possamos conhecê-las todas: adultas ou crianças, passamos a reconhecer suas particularidades psicológicas, seus sonhos e medos e forças. Ao término do enredo, os protagonistas simplesmente deixam saudades – algo cada vez mais raro para qualquer obra de ficção.
Devido à extensão do livro (são 1104 páginas), A Coisa não é uma leitura breve, mas o excelente ritmo da narrativa garante que dificilmente se tornará tediosa. Pessoalmente, as únicas críticas que tenho envolvem a inclusão de determinados interlúdios que, embora forneçam detalhes importantes para desenvolver a ambientação e história de Derry, podem quebrar o impulso da trama para leitores menos pacientes. Não foi o meu caso: mesmo com as pausas, A Coisa me arrastou por seus labirintos sombrios com a força de um pesadelo de infância – nefasto, belo e inesquecível.
A COISA | Stephen King
Editora: Suma de Letras;
Tradução: Regiane Winarski;
Tamanho: 1104 págs.;
Lançamento: Agosto, 2014 (atual edição).