O mundo evolui menos do que se pensa (quando se pensa). Nas manifestações que entendemos por cultura, a literatura inclusa, se tivermos um pouco de paciência, encontramos obras que tratam de assuntos miúdos, insignificantes e até mundanos mesmo, e é justo essa coleção de nadas que diz tanto sobre a nossa espécie. Há livros que tratam disso de forma direta, às vezes jogando na nossa cara; outros têm menos discursos e mais espaço para nossa interpretação, feito Dublinenses, publicado em 1914.
A estreia do irlandês James Joyce na literatura foi modesta sob a ótica formal, com “apenas” um livro de contos, antes do autor embarcar nas maluquices estéticas de Ulysses e Finnegans Wake – não é desmerecê-los, aquele um convite para se perder em Dublin e este um quebra-cabeça gigante com referências para tirar o sono de qualquer um; é porque Joyce soube, talvez sem perceber, retratar cenários amplos com pouco, enquanto nesses dois livros ele fez questão de dizer muito escrevendo demais, com direito a exageros e acertos, na ordem em que você achar melhor.
Dublinenses é direto. Não seco ou cru de propósito, apenas objetivo, foca nas ações e ideias dos personagens em uma Dublin cujos habitantes podem lembrar aqueles da cidade onde vivemos. Naturalmente, há menções diretas às leituras de jornais específicos, refeições (vai um prato de ervilha?), e demais costumes da época, mas ninguém precisa saber dessas coisas para entender os contos.
A estreia do irlandês James Joyce na literatura foi modesta sob a ótica formal.
“Araby” é sobre uma chance de um encontro, ainda que ingênuo e improvisado, mas sincero em sua ideia original. “Dois Galãs” é uma bela conversa fiada de um amigo aturando o outro a contar vantagens até ver o efeito delas. Em “Duplicatas”, o protagonista é um desastrado que bebe durante o trabalho e responde muito delicadamente ao chefe, para depois virar a pauta da fofoca diária. Eveline, protagonista da narrativa homônima, parece ter encontrado um par, embora seus olhos possam transmitir outro sentimento.
Curiosamente, o primeiro e o último conto lidam com a morte, e os personagens crianças das histórias iniciais logo dão espaço para outros com idade adulta. Um sujeito ficou na cidade e suporta a pompa de um velho amigo que voltou para um passeio, e se gaba de ter ido “lá fora”; uma relação que cresce aos poucos e se vê encerrada de um jeito tão próprio quanto seu começo; pequenas (ou grandes) divisões por opinião e posse material, às vezes apaziguadas em uma mesa de bar; o quanto grana e trato pesam em carreiras por começar, auto afirmações e desacordos em torno da política e da religião.
“Minha intenção foi escrever um capítulo da história moral de meu país e escolhi Dublin como cenário porque a cidade me parece o centro da paralisia. […] Cheguei à conclusão de que não consigo escrever sem ofender as pessoas”, afirmou James Joyce em uma venenosa carta em 1906, durante sua peregrinação para publicar o livro. A ofensa é a ótica dele, embora possa ser cômodo escrever isso com mais de um século de distância. Não há fantasias ou idealizações, apenas retratos ficcionais de como as pessoas podem agir. Talvez o próprio Joyce fosse um personagem, os retratos “cruéis” (palavras dele) só poderiam ter sido feitos por alguém que andou e apanhou pela cidade, e fez questão de retratá-la sem enfeites em uma obra na qual parte da nossa época também está presente.
DUBLINENSES | James Joyce
Editora: Penguin;
Tradução: Caetano W. Galindo;
Tamanho: 280 págs.;
Lançamento: Setembro, 2018 (atual edição).