Robert Neville está só. A população foi dizimada por uma praga e agora o mundo é todo feito de abandono e destruição. As residências vazias e os carros abandonados no meio da rua são a memória recente de uma sociedade que não desapareceu por completo. Mais do que os escombros do que restou, são os gritos cortando a noite e as pedras jogadas nas janelas cheias tábuas de sua casa que mais perturbam Neville. Aparentemente ele é a única pessoa imune à doença que levou seus vizinhos, seus colegas de trabalho e também sua mulher e sua filha. Na verdade, ela não os levou exatamente, pois os mortos sempre voltam para atormentá-lo quando começa a escurecer.
A história de Eu Sou a Lenda se passa no fim dos anos 1970, mas foi escrita por Richard Matheson em 1954, representando, portanto, uma imaginação bastante pessimista do autor com relação ao futuro, principalmente se levarmos em consideração que o livro chega a mencionar brevemente o medo com relação às consequências de uma guerra nuclear.
O livro, lançado recentemente em nova edição pela editora Aleph, mistura elementos clássicos de narrativas envolvendo vampiros e zumbis, ao mesmo tempo em que funciona muito bem como uma história de horror típica, que fala do sujeito comum que se vê diante de uma situação de perigo e precisa tentar sobreviver. Mas a obra também possui outras camadas de leituras mais interessantes que podem nos levar a questionar, por exemplo, se o personagem precisa mesmo sobreviver? Pra quê, se tudo é só sofrimento? Existe alguma razão para seguir em frente quando se tem a consciência de que não há mais nada lá fora?
Existe alguma razão para seguir em frente quando se tem a consciência de que não há mais nada lá fora?
Primeiramente, para avançarmos nessa leitura, é importante que você tire o Will Smith de sua cabeça. Sim, eu sei que ele está aí dentro junto com aquele cachorro, eu também tive dificuldades para superar isso na minha imaginação. É que o filme lançado em 2007, embora seja divertido, quase presta um desserviço à obra original, pois pouca coisa de sua essência está ali, uma vez que deixaram as discussões relevantes de fora e utilizaram apenas parte da mitologia e do enredo. O lado bom é que mesmo já tendo visto a versão cinematográfica, são bem grandes as chances de você se pegar pensando “Puta que o pariu, o que foi isso?” quando sua cabeça explodir diante do final surpreendente do livro.
Matheson expande o personagem popularizado por Bram Stoker (que chega a ser citado durante a história) e dá uma modernizada no conceito. Ele também insere os elementos de pesquisas biológicas assim como o fez Mary Shelley, em Frankenstein, então é como se tivéssemos a figura do vampiro sendo explicada a partir do discurso “puramente” científico. Isso faz todo o sentido na narrativa, pois já que Robert Neville não possui nenhum tipo de fé, ele precisa compreender o que está acontecendo de maneira racional e, a partir de muitas pesquisas, passa a estudar os símbolos clássicos como o crucifixo, o sangue, o alho e o reflexo no espelho por meio de uma perspectiva mais objetiva e menos mitológica. A partir de questionamentos como “O que faria um vampiro muçulmano diante de uma cruz?”, o personagem vai chegando a conclusões cada vez mais interessantes.
Por se tratar de uma história de isolamento (Neville em sua casa protegida é um Crusoé em sua ilha), o livro acaba por abordar questões psicológicas de maneira curiosa. A psicanálise dá as caras quando percebemos a dificuldade que o personagem enfrenta desde o início para lidar com a repulsa que sente por si mesmo, ao perceber que se sente atraído sexualmente pelas mulheres mortas que vagam sem rumo pelo seu quintal durante as madrugadas insones. Ele tenta preencher os seus dias com arte, principalmente com a música clássica que tanto gosta, mas tudo isso parece ser insuficiente para dar significado a uma existência cada vez mais absurda. A saudade, o vazio e a culpa tomam o peito do protagonista e a bebida alcoólica surge tanto como controle, quanto como gatilho para a instabilidade emocional que acaba por movimentar a trama.
Eu Sou a Lenda é um livro de terror que nos perturba não só pelas criaturas que infernizam a vida do protagonista, mas também porque nos deparamos com uma solidão imensa e assustadora, cheia de dentes tão afiados quanto os dos vampiros. Sentir-se assim tão só é angustiante, pois parece não haver mais nada lá fora além de um mundo todo feito de dor e escuridão. E às vezes não há mesmo.
EU SOU A LENDA | Richard Matheson
Editora: Aleph;
Tradução: Delfin;
Tamanho: 384 págs.;
Lançamento: Outubro, 2015 (atual edição).