A literatura fantástica engloba uma ampla gama de subgêneros e nichos, do realismo mágico à fantasia medieval à la Game of Thrones. As obras inseridas no âmbito do fantástico são infinitamente variadas, limitadas apenas pela imaginação humana e sua percepção particular do universo, e têm em comum a capacidade de retratar a existência subjetiva e criativamente, dissecando a realidade para fornecer perspectivas jamais antes consideradas na literatura puramente factível. Neste contexto, os livros que estabelecem uma ambientação original, povoada de personagens inesquecíveis e impulsionada por conflitos memoráveis e complexos se tornam clássicos do gênero, gerando legiões de imitadores.
Foi o que fez J.R.R. Tolkien com Senhor dos Anéis, nome máximo da fantasia clássica; Frank Herbert, por sua vez, criou a obra-prima da ficção científica épica com Duna; e Neil Gaiman, com Deuses Americanos, consolidou a sensibilidade da fantasia urbana contemporânea. Tão poderoso quanto esses três clássicos, Jonathan Strange & Mr. Norrell, romance de estreia da jornalista e escritora britânica Susanna Clarke, é um livro que merece figurar entre os maiores nomes da fantasia mundial.
O rigor histórico de Clarke, jornalista e pesquisadora exímia, é um dos pontos fortes da obra, assim como a linguagem empregada pela autora, caracterizada pela influência direta da comédia de costumes de Jane Austen e pelo tom característico de escritores britânicos imortais como Charles Dickens.
Lançado em 2004, o livro foi descrito por Gaiman como “a melhor obra de fantasia inglesa escrita nos últimos 70 anos”. Ao concluir a leitura, fica claro que a declaração do autor de Sandman, embora um tanto hiperbólica, não é de todo injustificada. Escrito ao longo de mais de dez anos, Jonathan Strange & Mr. Norrell é uma narrativa monumental, mesclando história e fantasia de forma orgânica e intrigante. Ambientado em uma versão alternativa da Inglaterra no século XIX, em meio às Guerras Napoleônicas, o romance tem como foco o conflito crescente entre os dois últimos mágicos britânicos, o recluso acadêmico Mr. Norrell e seu discípulo Jonathan Strange, ousado e imprevisível.
De início colaboradores na guerra contra as forças francesas, as visões de mundo conflitantes dessas duas personagens (ambas magnificamente construídas por Clarke, desenvolvidas com sutileza e paciência) conduzem a trama ao inevitável confronto. Além dos protagonistas, as outras personagens que povoam essa versão fantástica da Inglaterra na era georgiana são igualmente interessantes, representando classes sociais e arquétipos diversos e fornecendo à narrativa um aspecto de análise sociopolítica tragicômica e complexa.
O rigor histórico de Clarke, jornalista e pesquisadora exímia, é um dos pontos fortes da obra, assim como a linguagem empregada pela autora, caracterizada pela influência direta da comédia de costumes de Jane Austen e pelo tom característico de escritores britânicos imortais como Charles Dickens. Por vezes, a extensão do romance pode se tornar desafiadora, fazendo com que a trama perca fôlego em determinados momentos, mas logo o ritmo é recuperado, o enredo volta a avançar e a história é concluída satisfatoriamente.
Há, ainda, um aspecto metalinguístico que aprimora e enriquece a leitura: o livro conta com dezenas de notas de rodapé, escritas em tom acadêmico e verossímil, que detalham os aspectos fantásticos do mundo de Clarke, como os pormenores técnicos da ciência da magia, a história fictícia dos estudos mágicos na Europa e diversos detalhes geográficos sobre universos paralelos e as espécies sobrenaturais que os povoam.
Para os interessados em compreender melhor toda a força da literatura fantástica, Jonathan Strange & Mr. Norrell é uma leitura essencial. Para os fãs da visão social de Jane Austen ou aficcionados por ficção histórica, também.
JONATHAN STRANGE & MR. NORRELL | Susanna Clarke
Editora: Seguinte;
Tradução: José Antonio Arantes;
Tamanho: 824 págs.;
Lançamento: Agosto, 2005.