Para muitos amantes da literatura, a famigerada pergunta “Quais são seus livros favoritos?” pode gerar calafrios. Como extrair, da imensurável vastidão do literário, uma lista no estilo BuzzFeed com as melhores ou mais impactantes obras que já lemos? Como escolher, entre clássicos e queridinhos pessoais, um Top 10 definitivo da experiência literária? Muitas vezes, quando tento responder a esse questionamento, algo peculiar ocorre. O diálogo costuma seguir essa linha: Os Irmãos Karamázov? Ótimo, continue. Cem Anos de Solidão? Maravilha. Lolita, de Vladimir Nabokov—pera aí, o quê?!
Não fico surpreso com a má impressão que o nome “Lolita” causa no público em geral, usualmente distante das discussões aprofundadas em torno do cânone da literatura contemporânea. Parte do problema, acredito, é a imagem estereotipada da personagem titular que ficou gravada no inconsciente coletivo graças às duas adaptações cinematográficas da obra: uma adolescente com um pirulito nos lábios, pintados de batom vermelho, com óculos escuros em formato de coração, olhando para a câmera com um ar “sensual”. As editoras do livro não estão isentas de culpa nesse processo: são inúmeras as capas de Lolita que seguem a linha equivocada de retratar a obra sob uma estética de sensualidade ou incongruentes tons de romantismo.
Lolita é como um ovo Fabergé ou matriosca que oculta, detrás de cada meticulosa linha, níveis de significado concêntricos – e frequentemente contrastantes.
Não é de se espantar, portanto, que o livro seja alvo de críticas do público que, familiarizado apenas com essa imagem, considera seu conteúdo pornográfico (na melhor das hipóteses) ou literalmente criminoso (na pior). Lolita, afinal, é sinônimo de ninfeta – termo cunhado pelo próprio narrador da história, Humbert Humbert, para descrever o objeto de sua obsessão. Para agravar a situação, ao longo dos mais de 60 anos de sua publicação, a complexa construção linguística e psicológica da narrativa de Lolita deu margem às mais diversas análises, muitas das quais exaltam o relacionamento de Humbert com a enteada de 12 anos como uma espécie de love story politicamente incorreta.
Psicologia da obsessão
Além de nociva, tal interpretação é, a meu ver, bastante equivocada, sem fundamento concreto na narrativa minuciosamente confeccionada por Nabokov. Quando defendo o livro de seus detratores, costumo resumi-lo em uma frase: Lolita não é uma história de amor, mas de obsessão. Nesse aspecto, Lolita não difere de séries como Breaking Bad ou Família Soprano, narrativas que não se resumem à glorificação de sua temática (a criminalidade), mas fornecem estudos complexos da moralidade incerta de seus protagonistas e da psicologia do próprio mal.
Ainda, enfatizo a importância de se desprender de concepções prévias acerca do livro para analisá-lo como obra literária em todos os seus aspectos, do linguístico ao estético. O tabu de sua temática, intencionalmente escolhido pelo autor (um polemista e provocador notório), é apenas uma das múltiplas faces de uma obra deliciosamente complexa, que se assemelha a um ovo Fabergé ou matriosca que oculta, detrás de cada meticulosa linha, níveis de significado concêntricos – e frequentemente contrastantes. Ao término da trama, as inesquecíveis personagens principais – o narrador, Humbert, e a heroína, Lolita – tornam-se figuras verdadeiramente sólidas na mente do leitor.
A estrela da obra, contudo, é a prosa. Mesmo bastante floreada, a linguagem de Nabokov flui, líquida e poética e amplamente amparada por recursos sonoros diversos, com recorrentes aliterações e assonâncias. Costumo ressaltar que, embora existam excelentes traduções, a leitura do original em inglês é essencial para compreender toda a musicalidade e acidez do estilo nabokoviano.
Além da polêmica
Justificando a escolha da pedofilia como objeto de sua análise artística, Nabokov aponta, no posfácio da obra, outras duas polêmicas que, somadas à temática de Lolita, formariam os principais tabus para as editoras americanas de sua época: retratar um casamento interracial feliz e bem-sucedido, com diversos filhos e netos; e narrar a vida de um absoluto ateu, como membro realizado e útil da sociedade, que morre durante o sono aos 106 anos (curioso ver que, passados 62 anos, os tabus continuam os mesmos).
Reduzir o conteúdo e forma do livro ao debate sobre a natureza do relacionamento de Humbert e Lolita (que é, sim, indefensável pedofilia, e nada tem de romântico) é cair na primeira das armadilhas que o autor preparou nessa que é uma de suas obras mais desafiadoras. Insisto, portanto, para que o artifício não se torne o ponto de discussão principal, e que Lolita seja merecidamente analisada como a máxima concretização da arte de um grande escritor.
Um último adendo: Lolita é, para mim, uma obra infilmável (não, não me interessa que o corretor acuse a inexistência do termo). Sua natureza essencialmente psicológica, fundamentada no labirinto de ilusões e desejos de seu narrador, está ligada de forma intrínseca e indissociável à linguagem literária. Por isso, se quer embasar sua opinião sobre autor e obra, esqueça os filmes e vá ler o maldito livro. Obrigado.
LOLITA | Vladimir Nabokov
Editora: Alfaguara;
Tradução: Sergio Flaksman;
Tamanho: 392 págs.;
Lançamento: Abril, 2011 (atual edição).